31 março 2006

O Sonho ao Poder!


Mário Viegas
10 Novembro 1948-1 Abril 1996


Onde vai Chirac?



Chirac e Villepin encontraram-se hoje de manhã para combinar o que o Presidente diria à noite; a responsabilidade é, portanto, dos dois.

No discurso desta noite nada de novo. A mesma manipulação que nas últimas semanas fez crescer o número de manifestantes na rua, a mesma falta de respeito pela população, a minoração de 4,5% da população (e 67% que se mostram contra a lei nas sondagens), tratada como um bando de terroristas burros. Chirac e Villepin, do alto dos seus cadeirões, gozam com quem cá em baixo não tem poder. Ou é o que eles julgam... A "democracia" mantém-se o kratos (poder, força) de uns quantos eleitos e nomeados, contra a manifesta vontade do dêmos (povo).

Já há uns dias que a raiva vem crescendo, ouve-se uma voz cada dia mais alta. Do sussurro passou-se ao murmúrio, e daí chegaremos ao grito... Há o problema do "Chômage, Précarité, Exploitation", de toda a pretensa "igualdade de oportunidades"; mas cada vez mais, dá raiva tanta soberba, torna-se insuportável que nos tomem por parvos, que, entre um passeio na Alemanha e um jantar com o Rei de Espanha, ainda tirem tempo para gozar com quem trabalha.

Em 1789 os franceses determinaram que haveria cidadãos eleitos de entre o povo, que os representariam. Estes governantes esqueceram tudo; não se vêem como parte do povo e não o representam. Não são citoyens, são apenas élus.
Será que veremos um 14 de Julho em 2006, uma tomada do Eliseu ou Matignon? Uma nova ponte, como a que foi construída com as pedras da Bastilha e que dá acesso à Assembleia Nacional (e que era suposto perpetuar nos deputados a memória do que acontece a quem governa contra o povo)?


4avril

Prisão de um jovem sindicalista

Karl Stoeckel, dirigente sindical da UNL - um sindicato de estudantes do liceu, foi preso durante uma pequena manifestação pacífica, desta vez sem confrontos nem "casseurs", segundo os testemunhos. A polícia interveio mesmo assim e prendeu várias pessoas.

Esta é a entrevista que deu quando foi libertado.



As manifestações de hoje ocorreram na sequência das ordens de ontem do Ministro da Educação: os directores dos liceus foram incitados a acabar com os bloqueios, empregando para isso a violência necessária.

30 março 2006

"Pela memória"

Ontem a Isabel Faria escreveu este post no Troll. Surgiu então a ideia de criar uma corrente "Pela memória". A ideia é enviarmos e-mails para o endereço da empresa - pacododuque@temple.pt - a exigir o respeito pela história e a memória do país. Entupir-lhes a caixa de correio com a denúncia de publicidade enganosa e a "lembrança" da história do edifício enquanto sede da PIDE.

Proposta de texto:

Ao consultar a página na Internet deparei-me com algumas incorrecções que urge corrigir.
Na página dedicada à história do edifício, os senhores mencionam apenas os acontecimentos até 1640. Como sabem, estamos em 2006 e, entretanto, houve História naquele edifício. Como também sabem, o edifício foi sede da PIDE-DGS, polícia política do regime fascista. Até 1974 era para aquele edifício que eram levados os presos, para serem interrogados sob tortura. Como é público, os maus-tratos levavam, não raramente, à morte.
Omitir as mortes e as torturas é publicidade enganosa. Naquele lugar não houve apenas banquetes e festas de casamento. O fascismo existiu. A PIDE-DGS torturou e matou.
Exigimos o respeito da História do País e da memória de quem ali sofreu e morreu.

A luta continua!

O Conselho Constitucional considerou que a lei está plenamente de acordo com a Constituição Francesa.

Simultaneamente, na reportagem da rádio, era explicado que o Conselho Constitucional (e não Tribunal Constitucional) é constituído por "ilustres" nomeados pelos vários órgãos de poder (Presidente, Assembleia, etc.). Um dos tais "ilustres" é o sobejamente conhecido Giscard d'Estaing, que se deu ao luxo de não se deslocar para deliberar sobre este assunto menor. Em vez de 10 votos, foram portanto 9. E a avaliar pelo gabarito deste nomeado, imaginem-se os restantes...

Segundo os sindicatos, os procedimentos legais não acabaram. Mesmo considerando que a lei "da igualdade de oportunidades" (onde se inclui o CPE) está de acordo com a Constituição, consideração apenas possível se se ignorarem vários artigos desta, a lei não respeita diversos tratados internacionais assinados pela França.

A luta nos trubunais continua.
Na rua segue já terça-feira, dia 4 de Abril. Greve e manifestações.

29 março 2006

O Tigre e a Neve

Não quero repetir-me, mas como passou muito tempo...
Vi hoje no jornal que este filme vai agora estrear em Portugal. Não percam!

E os sonhos, sonhos são

Calderón de la Barca
La vida es sueño
1636




SEGISMUNDO:
"Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
(...)
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.
(...)
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño;
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son."


Foto: actores de La Barraca que representaram, sob a direcção de Federico García Lorca, o auto sacramental La vida es sueño (1932).

28 março 2006

A greve e o governo


O Metro esteve hoje um pouco mais lento, mas nada de especial. Houve outras áreas muito mais atingidas: as escolas, a rádio, os jornais, os comboios, os aviões e aeroportos. Os quiosques, sem jornais para vender, estiveram fechados.

O governo está já dividido. Claro que ter um regime presidencialista em que Presidente, Primeiro-Ministro, e nº 2 são concorrentes entre si a umas eleições muito próximas, não pode dar coisa boa, é impossível!

O Sarko, que é fascista e muito inteligente, disse hoje que o governo deve suspender a lei para negociar. Percebeu que os manifestantes iriam ser já uma percentagem significativa da população, e o salário de presidente deve ser bem melhor que o de ministro. Além disso, num regime presidencialista, a lei pode ser retirada e voltar depois até em modalidade bem pior.

O Villepin continua a querer negociar, fazer pequenas mudanças na lei e não admite retirá-la de forma nenhuma. Insiste na "pedagogia"... aparentemente somos todos completamente estúpidos e não entendemos a lei. Tem ainda a curiosa noção de que as manifestações são anti-democráticas. As leis são feitas pela Assembleia e o Governo (neste caso sem discussão) e o povo não tem nada a dizer.

Quinta-feira há novidades: o Tribunal Constitucional vai pronunciar-se sobre a validade da lei, por esta discriminar os trabalhadores em função da idade.

Nalguns países do resto da Europa há manifestações de apoio a este movimento frente às embaixadas francesas. Soube há pouco que em Lisboa houve uma manifestação da CGTP contra a precariedade.

Os sindicatos não põem a hipótese de desmobilizar, o movimento aumenta a olhos vistos, e internacionaliza-se. Amanhã reúnem novamente para decidir o que vão fazer. Fala-se em greve geral: a última vez que foi convocada uma greve geral em França foi em 1944, para exigir a libertação de Paris.

A ver vamos.

Pelo menos 4,5% da população francesa saiu à rua!

2,7 milhões de pessoas manifestaram-se hoje em França (segundo a CGT serão mesmo 2,9 milhões - 4,8%).

Choveu em Paris durante quase todo o tempo, às vezes com bastante força. Felizmente a temperatura era a ideal para estas coisas: temperada. Sob a ameaça da polícia do Sarko, sob a ameaça de quem quer causar distúrbios que só favorecem o governo, sabendo que também estes confrontos têm vindo a aumentar, 2,7 milhões de pessoas desceram à rua organizadamente, desfilaram em Paz, e responderam "Résistance!"

Hoje não me arrisquei, perdi por isso alguma visão do conjunto da manifestação. Integrei-me no desfile da ATTAC, porque têm acontecido ataques a pessoas que desfilam isoladas, sobretudo para roubar. De qualquer modo, durante mais de metade do desfile havia, pelo menos aparentemente, muita calma. Cada organização tinha os seus seguranças, e nas margens do desfile não vi nada de especial. Ou melhor, uma senhora tinha posto na sua janela um cartaz que dizia algo como "Contra o CPE! Continuem. Visto aqui de cima é maravilhoso!".
Mais perto da République começaram a aparecer os tais pequenos grupos à margem, que conseguem integrar o cortejo. São miúdos em idade escolar, podem confundir-se facilmente com alunos do liceu que também desfilam.
Na République o cortejo desmobilizava logo do lado direito, nas duas primeiras ruas logo ao lado de onde vinha ainda o resto da manifestação. Os seguranças das organizações faziam um cordão bloqueando o resto da praça, de onde já vinha um vago cheiro a gás, e muito barulho. As entradas do Metro estavam fechadas e naquela zona a polícia estava bastante calma.
Visto daquele canto não parecia estar a acontecer nada de especial, mas era muito difícil ver o resto da praça, tal era a maré de gente que ali estava.

Mais uma nota: a caminho do Metro, num boulevard cheio de carrinhas da polícia, passei por um soldado, que dava a entender que o Sarko chamou também o exército.

Postas estas considerações, o importante:


Pelo menos 4,5% da população francesa saiu à rua!

27 março 2006

Viva a mangerona!

D. Fuas, olha só o que encontrei!


Ok... não encontrei agora, mas guardei para hoje.

24 março 2006

Bluff

Foi o que fez Villepin. Afinal só quis fazer perder uma tarde aos sindicatos... não se adiantou nada, nem os deixou falar das propostas que tinham. E no fim, o mesmo discurso arrogante de sempre para os jornalistas. Fica tudo na mesma, greve e manifestação dia 28.


Que se passou ao certo na EHESS?


Na Sorbonne os jornalistas entraram com os fotógrafos e os câmaras, e a fantochada propagandista do ministro foi desmontada em directo, enquanto ele falava. Nenhum jornalista, nem os mais favoráveis ao governo, viram de onde tinha aparecido o livro que ele mostrava como queimado. Quando tentaram filmar as paredes pintadas, só apareceram cartazes colados; quando procuraram as pistas das tais "queimas de livros" não havia cinzas.
Aliás, muitas das bibliotecas da Sorbonne não são naquele edifício, nem na mesma rua, algumas nem sequer no mesmo bairro.

Neste caso a coisa é diferente. Pelos vistos os jornalistas não entraram e tiveram que fiar-se no alarmismo propagandista dos responsáveis. As notícias limitam-se a uma sucessão de citações.

Mas há testemunhos de estudantes que afirmam lá ter estado e que havia um bom ambiente, e que o grupo seria constituído em parte por estudantes da casa, contrariamente ao afirmado pela imprensa.
Estas fotografias mostram mobiliário partido, paredes e mesas escritas, muita desarrumação. Mas não se vêem excrementos pelo chão nem computadores partidos, como afirmado pela reitoria de Paris. Será que faltam fotografias ou isto é mesmo tudo o que aconteceu, e foram tiradas por quem...?
É um caso que não se percebe.

De qualquer modo, mesmo que não haja mais do que umas cadeiras e mesas partidas e muitas paredes escrevinhadas, que raio de revolução é esta que (1) serve para denegrir um movimento popular que, embora limitado nas ambições, está à beira de conseguir resultados práticos; (2) suja e estraga equipamentos públicos que vão ser pagos pelo mesmo povo que dizem tentar salvar; e (3) deixam as paredes todas para os trabalhadores mais pobres da sociedade limparem - precisamente os pais dos jovens das banlieues?

Manifestações em França e Portugal III - percursos e fim de manifestação

Os percursos também são substancialmente diferentes. Em França, percorrem-se enormes avenidas vazias, com tudo fechado e quase ninguém nas janelas, fazem-se percursos longuíssimos, mas sem qualquer significado. Chegados ao objectivo, os manifestantes desmobilizam imediatamente. Ainda o desfile vem a chegar já as pessoas vão embrulhando as bandeiras e os cartazes. Não há um discurso, não há um palco, nem poesia, nem música. Chega-se já com tudo arrumadinho, prontos a entrar no metro. Em cinco minutos o trânsito volta ao normal.

Nós, em Portugal, costumamos organizar as manifestações de modo a dizer o que queremos a quem queremos. Se o problema é com o ministro da educação, por exemplo, então a manifestação desemboca (ou então faz-se uma concentração sem desfile) junto ao ministério da educação. Além das manifestações convocadas para a Avenida da Liberdade, a maior parte dos desfiles acaba em locais emblemáticos como a Assembleia da República. Também costumamos ter uma comissão conjunta de representantes de todas as organizações que convocam a manifestação, que redigem um texto (uma petição ou carta de exigências) e o lêem para os manifestantes. Em seguida esta comissão vai mesmo pedir para falar com o ministro / orgão responsável e entregar a petição. Só há desmobilização quando esta comissão volta a sair com uma resposta. É certo que os ministros não costumam estar presentes e o máximo que acontece é deixar-se o texto com os secretários, mas espera-se pela resposta de qualquer forma.
E não raro há uma pequeno palco, ouvem-se os representantes de quem convoca a manifestação, há música ou poesia, e esclarecimento. A manifestação torna-se festa.

Manifestações em França e Portugal II - comemorações

O ano passado comemoraram-se os 60 anos do fim da II Guerra. No dia 8 de Maio, à tarde, saí de casa, esperando ver as pessoas em grandes comemorações na rua. A rádio dizia que as comemorações eram nos Champs Elysées, e lá fui eu. Na verdade, só encontrei uma enorme parada militar, com o Chirac a fazer continência a uma fila de rapazinhos com boné, umas coroas de flores encostadas ao Arco do Triunfo. Estavam em cerimónias militares desde manhã cedo e estávamos a meio da tarde. O público limitava-se a assistir das bancadas num silêncio sepulcral. Só o trompete militar tocava de vez em quando.
Eu, habituada à nossa festa do 25 de Abril, esperava um desfile, ou gente a ocupar as ruas, música... não sei bem o que esperava, mas tinha a ver com gente, alegria, FESTA. E nada!

É certo que em Portugal nos queixamos que as comemorações estão cada vez mais monótonas, sempre o mesmo desfilezinho a perder significado. Em parte é verdade, mas também é certo que quando Paulo Portas quis fazer as paradas militares à tarde na Avenida da Liberdade, desalojando as nossas comemorações de sempre, foi ele que foi desalojado e posto na rua. Concordo que precisamos de mais concertos (os concertos de dia 24 à noite estão em vias de desaparecimento, porquê?), mais iniciativas culturais e de informação, especialmente aos mais novos. Ainda assim, o 25 de Abril continua a ser uma festa principalmente popular.

CPE - 23 Março


Hoje não pude ir à manifestação. Através da rádio e da televisão, fiquei a saber que teve muita gente, muitos de fora, e distúrbios ainda piores. A novidade, segundo quem lá esteve, é que a violência se virou contra os manifestantes. O que não é novidade, obviamente, é que os CRS ficaram quietinhos em posição, face aos pedidos de ajuda dos manifestantes atacados. Só agiram quando os manifestantes conseguiram sair de lá e a violência se virou de novo contra a polícia. Deve ser para isto que os franceses lhes pagam os ordenados... Ora, uma descrição destas vinda dos Jovens Socialistas, que até costumam ser de costumes brandos, dá para imaginar o inferno que terá sido...


Mas houve um outro avanço nada pequeno: o Villepin já quer conversar! Hoje de manhã mandou uma carta aos sindicatos e aos estudantes para reunir, quando quisessem, numa reunião com ordem do dia a definir pelos sindicatos. Os sindicatos responderam que vão lá amanhã, os estudantes irão depois. Mas alguns deles foram avisando: vamos lá dizer-lhe directamente que as negociações são feitas antes de aprovar as leis, e que as negociações só seguem quando a lei fôr retirada. Nem mais!


O L'Express tem uma reportagem fotográfica sobre os acontecimentos da Place de la Nation. O Cyril continua em coma, e do inquérito pedido pela SUD não há notícias.

22 março 2006

Sexto Livro à Quarta


Porque ontem começou a Primavera e foi dia da poesia e porque esta semana descobri o blogue de um autor de quem me emprestaram três dos seus livros (publicou entretanto mais dois) e não consegui fazer mais nada antes de terminá-los, por isso hoje a poesia de José Miguel Silva.

Prémio
Vales, ravinas, desertos,
e fins de semana, livros a mais,
amigos a menos, noites
de fumo, de corpos alheios,
de novo ravinas, desertos
e vales - eu nunca pensei
que fosse tão longe e que fosse
tão pouco a felicidade:
ovos mexidos, arroz de tomate,
o ir a correr quando o filme começa,
o vem para a cama, um sopro
de mel, e novas legendas no álbum
de fotos - eu nunca pensei
que fosse tão alto este único prémio
de consolação.

José Miguel Silva
Ulisses já não mora aqui& etc.



POETAS, GESTORES, CORREIOS DE DROGA

Os poetas, tal como os gestores ou os correios de droga,
são almas simples, que valorizam sobretudo a amizade
do dinheiro, a louça cor de amêndoa, o vício de viver.
Dobradiças oleadas e perfumes de renome.
Um poeta é um animal feito de palavras que perfeitamente

servem ao pedreiro, ao enxoval, ao caracol: sílabas macias,
untuosas, radiantes como folhos de cortina. E por que havia
de ser doutra maneira, perguntamos? Sofrimento há que chegue
para todos. Não me falem em quinhentos mil casebres,
pois a minha namorada, o meu patrão, a porcaria do motor

este calor na cabeça. Ninguém se dá, é bom de ver,
como culpado. Somos todos de direita, todos; pois outra coisa
não se chama viver. E mesmo os que dizemos ser de esquerda
temos, como toda a gente, a grande sageza de não fazer contas.
Sabemos como é frágil o sossego, como é espantadiço

É com fleuma e bom-humor que recebemos o azar
dos que não cabem à mesa, o desmoronamento dos que vivem
pouco, podre, mal. Entre burros, egoístas e vaidosos,
é preciso ser alguém para fugir de ser feliz. Muito raro,
na verdade. Oh não te finjas, leitor, surpreendido

Não me digas que pensavas que os homeros eram feitos
às rodelas, com recheio de bombom. Conta-me outra.
Lê-os, se achas que te podem ser úteis, mas não faças
grande fé nas virtudes que tangem. Isso é coisa
que se aprende, corriqueiros exercícios de entretém.

E se vires um crítico a enrolar a língua na palavra “poeta”,
não ligues. São mais sonsos do que parecem, os críticos.

José Miguel Silva nasceu em Maio de 1969, em Vila Nova de Gaia. Publicou O Sino de Areia (Gilgamesh, 1999), Ulisses Já Não Mora Aqui (& etc., 2002), Vista Para Um Pátio seguido de Desordem (Relógio D'Água, 2003).

21 março 2006

Manifestações em França e Portugal I - solidariedade e civismo

Nestes dois países as manifestações passam-se de modos muito diferentes. Estou a tentar fazer uma pequena comparação, mas apercebi-me de que o texto vai ficar bastante grande. Assim sendo, vou dividi-lo por pontos em posts separados. A começar hoje e a acabar... quando me parecer que disse o mais importante.


Primeiro que tudo, algo que me espantou desde a primeira vez que vi uma greve em França. Foi em Lyon, e tratava-se de uma greve de transportes. Foi uma greve total, durante dias e dias nem uma carruagem de metro ou de eléctrico, nem um único autocarro. Excepção feita à linha B de metro, que é automática, não tem condutor. Os condutores reuniram-se junto às paragens de autocarro do centro da cidade a distribuir panfletos que explicavam as motivações. A greve muitas semanas, entre dias de paragem total e outros de paragens parciais. Fura-greves, graxistas? Não, nem um.
Espantou-me a solidariedade. Provavelmente as condições de trabalho não prejudicam a todos os trabalhadores da mesma forma, mas todos se bateram. Penso que naquela altura estava em causa o regime laboral e os salários, mais baixos do que os que tinham os colegas de Paris.

Em Portugal, quando há greve, a maior parte das pessoas aproveita para fazer figura de graxista para agradar ao chefe. Também na opinião pública há diferenças. A maior parte dos franceses, admite que a greve incomoda e perturba a sua vida quotidiana (aliás, a greve é exactamente para obrigar os governos/patrões a ceder, não?), mas entendem os motivos. Os portugueses acham que "greves era só das seis e meia às sete" da tarde de domingo (obrigada, Sérgio Godinho), e que os grevistas nunca têm razão. Claro que falo de generalidades, e em ambos os países há excepções.

(continua)

20 março 2006

A polícia é sempre a polícia...


Soube-se hoje o que a polícia andou a tentar esconder desde sábado. Pisaram e bateram num sindicalista que estava sentado, e que está em coma profundo. Segundo relatos, a CRS recusou-se a chamar os socorros.
O artigo completo está no Libération ou no Le Monde. O Libération fala também num outro caso ocorrido em 86 e que custou o lugar ao PM na altura, o conhecido e repetente Chirac.


Agora, ao escrever, reparo na coincidência... também em 86 tínhamos um PM agora repetente, também agora como PR. E também nesses mandatos havia grandes cargas policiais e um caso semelhante ao francês na Ponte 25 de Abril.

19 março 2006

A manifestação de 18 de Março

Ontem tive que sair a correr da manifestação assim que cheguei ao destino, pelo que não tive uma percepção aprofundada do que se passava.

Primeiro que tudo a enorme emoção de ver tanta gente. Uma quantidade inimaginável para nós, portugueses que não estávamos no 1º de Maio de 1974. Em Denfert, no início da manifestação e 2h depois do início do cortejo, ainda havia uma concentração compacta, que transbordava para as ruas laterais. E já a manifestação tinha começado a sair dali há duas horas, sempre compacta.
Quando os últimos manifestantes saíram de Denfert, já os primeiros tinham chegado a Nation, a 5km de distância. O cortejo foi sempre compacto. 5km de cortejo compacto. Eu não imaginava o que era isso...
É pena não haver fotografias tiradas de helicóptero ou avião, para se ver melhor a mancha de gente.


Na manifestação havia gente de todas as idades. Famílias com carrinhos de bebé, crianças pequenas que repetiam apenas "Non, non, non" porque não sabiam dizer mais.
Já em casa, fiquei a saber que a própria polícia desfilou desfardada e com braçadeiras sindicais, em apoio aos manifestantes.

Ao longo do percurso adivinhava-se o que se seguiria: nas margens do cortejo, grupos muito "brincalhões" iam "brincado" aos encontrões contra montras. Sempre no meio de risota, para fazer parecer que estavam a brincar. Mas a andar muito rapidamente, iam passando mais rápidos que o cortejo, sempre a atirarem-se uns aos outros contra montras, andaimes, o que houvesse.


Mais uma vez, confirmei a ideia de que os distúrbios e a manifestação são duas coisas distintas. Os intervenientes são outros.

A Place de la Nation, onde acabava a manifestação, é uma praça semelhante ao Marquês de Pombal, mas gigantesca: uma praça redonda, tipo rotunda onde desembocam várias grandes avenidas, com um passeio redondo ao meio com uns canteiros e uma estátua. À chegada, os manifestantes viravam à direita e desmobilizavam por ali. Algumas pessoas reuniam-se frente à avenida de onde vinham os manifestantes e ali próximo.

Quando cheguei já havia um início de distúrbios com a polícia, mas à esquerda deste local: os manifestantes viravam à direita e os problemas eram à esquerda, não na avenida contígua, mas mais longe, o que numa praça daquela dimensão, é mesmo fora da manifestação. Aliás, no meio da manifestação não cheirava sequer ao gás lacrimogéneo que já estava a ser lançado no local dos problemas.


Felizmente, nem os perturbadores nem o governo conseguem o que querem. A opinião pública está cada vez mais contra o CPE e contra o governo. Numa notícia que li (não ponho ligação, porque já não me lembro onde - de qualquer modo li o Libération, o Le Monde, ouvi a TV5 e a France Info - foi num destes sítios) a popularidade do PM Villepin desceu 6 pontos só a noite passada. Ele diz... não, mentira, ele já não diz, manda o porta-voz dizer, que um milhão de pessoas na rua significa que 59 milhões estão em casa. É verdade, muitos não podem e muitos outros não se dão ao trabalho. Mas as sondagens são o que são, e já não costumam ser assim tão falseadas como isso: mesmo que o fossem, seria a favor do governo e não contra.


O que se segue

Os sindicatos de estudantes estiveram reunidos hoje. Antes da reunião, fizeram saber que os protestos vão continuar. Amanhã reunem outra vez, mas com os restantes sindicatos, associações e partidos políticos que têm apoiado o movimento. A greve geral é uma possibilidade cada vez mais presente em todos os comentários. Ninguém, repito ninguém fala em desmobilização ou fim do movimento.


Os contras

Tem havido também algumas pequenas manifestações, não contra o propósito do movimento anti-CPE, mas contra os bloqueios das universidades e liceus. Alguns estudantes vêem a época de exames aproximar-se e querem retomar as aulas. Nenhum deles (a não ser os movimentos partidários e sindicais de direita) se manifesta a favor do CPE. Só não concordam com os métodos. De qualquer modo, são pequenos grupos.



Mais uma nota: tenho pena que os protestos de ontem não se tenham junto aos protestos contra a guerra. Penso que houve um protesto na Concórdia, mas não ouvi mais nada sobre o assunto, não sei se teve gente ou não. É pena terem sido em simultâneo sem se terem junto. A invasão do Irão parece iminente, e a mobilização nesse sentido é importante. É preciso falar-lhes nas línguas que entendem: votos (ou sondagens que os prevêem) e dinheiro (sem trabalho não há lucro - greve).

17 março 2006

Cheira a azeitonas, queijo, vinho, e migas

Melro
Janita

Este ou outro disco do Janita. Pouco importa. Todos os que conheço têm uma surpresa... e todos têm a música do Alentejo. As saias, os coros, os romances...
E o Janita tem na voz essa mistura bem tradicional e alentejana de povos e gentes: ora são os ciganos, a música andaluz, árabe, lisboeta, um sem fim. Como as gentes que se cruzaram sempre por ali: judeus mais ou menos convertidos, cristãos, ciganos, árabes que foram ficando, a Espanha ali ao lado, as migrações pelo país, o trabalho sazonal por todo o lado.

(À parte: não sei quem raio inventou a ideia que se diz por aí de que a música portuguesa é pobre! Toda a vida ouvi essa frase, até da parte de músicos, e nunca percebi as razões, também ninguém mas soube explicar...)


Este disco teve a colaboração de (isto parece um desfile do melhor que houve e há no país): José Afonso, Vitorino, Pedro Caldeira Cabral, Durval Moreirinhas, António Sérgio, Luís Caldeira Cabral, um poema de Manuel da Fonseca, outro de António de Sousa, entre outros.

Como a Lotte Lenya está ali no cantinho muito descansada, e chegou há pouco tempo, adicionei o Janita logo por baixo. Trata-se do tema "Saias do Freixo", tradicional do Redondo, com arranjo de João Salomé, Vitorino e Pedro Caldeira Cabral.

António Cordeiro Lopes

Tinha 48 anos. Foi meu professor. Querido Professor, inquieto e apaixonado, qualidades que no Departamento onde trabalhou não abundam, sendo mais frequente o agastamento monótono equidistante da morta academia. O professor Cordeiro Lopes fez parte da meia dúzia de professores que fez da minha passagem pela faculdade algo em que acreditar.
No placard do Departamento de História um papel..por motivos do falecimento do colega António Cordeiro Lopes não se irão realizar as jornadas...nada mais. Por aqui se percebe como está morta a Academia. Por isso estas palavras aqui a expressar o meu profundo desgosto e pesar.
Até sempre Professor

16 março 2006

Dois pequenos apontamentos sobre a manifestação

1. Não deixa de ser irónico que os episódios de repressão e de gás lacrimogénio tenham sido num dos locais emblemáticos da Liberdade em Paris: junto ao Hotel Lutécia, que recebeu os refugiados vindos dos campos de concentração nazis, que ali ficaram enquanto esperavam a reinserção e o retorno às suas terras, assim como o reencontro com as famílias.

2. A falta de aprendizagem de história na escola deu hoje numa "mini Aljubarrota" que me deu um enorme gozo. Os distúrbios passaram-se no local de chegada da manifestação, o cruzamento Sèvres-Babylone. A manifestação levou mais de uma hora a chegar e, como de costume, fechava com uma coluna policial. Bom, a certa altura, o cruzamento estava rodeado de polícia e os manifestantes dentro de um cordão policial (ainda não completamente fechado, podia circular-se pelas bermas das ruas). Os polícias que vinham atrás da manifestação (uns 20) decidiram apertar o cerco e começaram a avançar, mandando os manifestantes passar para trás deles. E uma parte dos manifestantes obedeceu calmamente.
Resultado: os 20 palermas deram por si rodeados de manifestantes por todos os lados, assobiados, alvo de chacota. Tiveram que retirar com o rabinho entre as pernas, direitinhos e em filinha, para uma rua mais apertada onde podiam defender-se atrás das barricadas de plástico.
Só depois é que se passaram os acontecimentos que descrevi no post anterior, no número 4.

Esclarecimento relativo à notícia de abertura do Telejornal na RTP às 20h00

1. O desfile foi composto por alunos do ensino superior e secundário, professores, pais, sindicatos e partidos políticos.

2. Os grupos "mais radicais" era um pequeno grupo de 40 ou 50 pessoas, o que num universo de centenas de milhar de manifestantes é ínfimo.

3. O gás lacrimogénio foi usado repetidas vezes na rua - sempre seguido durante pelo menos hora e meia - não só contra esse grupo de 40/50 pessoas, mas para o meio da manifestação (onde estavam grupos de pessoas a conversar calmamente, de mãos nos bolsos...). A estação de metro de Sèvres-Babylone foi igualmente gaseada, atingindo assim milhares de pessoas, dado que se trata de uma estação central onde se cruzam três linhas e que, num espaço fechado, o gás fica concentrado muito mais tempo, atingido todos os que ali passem durante várias horas.

4. As "contidas" forças da polícia de choque (CRS), chegaram a fechar todo o cruzamento da Rue de Sèvres e os acessos ao metro para quem vinha do recinto da manifestação, impedindo a saída e a dispersão dos manifestantes não envolvidos nos distúrbios (que aliás estavam num outro ponto do cruzamento). Depois começaram a avançar na avenida, batendo com os bastões nos escudos, onde estavam três grupos: um grupo de percussionistas rodeados de público a dançar e bater palmas, um outro grupo de manifestantes sentados calma e pacificamente no chão e ligeiramente afastada uma rapariga sozinha frente aos polícias, sentada a ler (bem, que ameaça!!!). eu estava frente a tudo isto, encostada a uma montra de um café. Logo ao meu lado, um grupo de raparigas adolescentes, muito novas, gritavam que só queriam sair dali e ir para casa. A única intenção que se consegue encontrar neste bloqueio é a de provocar reacções de pânico, tendo assim uma boa desculpa para atacar.

Livro com música - 2. a música

Bom, o óbvio seria ter posto o "Moon of Alabama". Mas isso toda a gente conhece, nem que seja na versão dos Doors.

Aqui temos Lotte Lenya,a mulher de Kurt Weill, no papel de Jenny a cantar "Meine Herren, meine Mutter prägte": "Meus senhores, a minha mãe previu". Acompanhada Heinz Sauerbaum, Gisela Litz, Horst Günther, Georg Mund, Fritz Göllnitz, Sigmund Roth, Peter Markwort, richard Munch, os Norddeutscher Radio-Chor e Orchester, dirigidos por Wilhelm Brückner-Rüggeberg.

15 março 2006

Livro com música - 1. o livro

Um livro, uma ópera.


Bertolt Brecht
Grandeur et décadence de la ville de Mahagonny

O original, na verdade é "Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny", e em português seria algo como "Ascensão e queda da cidade de Mahagonny".

Fundada sob o mote "nada é proibido, tudo é permitido e tudo pode ser comprado", a cidade destrói-se a ela própria, consequência última da vida com este mote.

Introdução ao número 19 (tradução do francês): "Execução e morte de Paul Ackermann. Sem dúvida muitos espectadores sentir-se-ão incomodados ao ver a próxima cena, em que se assiste à execução de Paul Ackermann. Mas pensamos que estes mesmos espectadores não consentiriam a pagar a dívida dele. Este é o respeito que o dinheiro hoje nos inspira."

Era assim que Brecht via a Humanidade em 1930. Passaram 76 anos. Não me parece que maior parte das pessoas tenha mudado. A peça mantém toda actualidade, quem sabe até mais. O consumismo e a ditadura da economia e do dinheiro impõem-se mais a cada dia que passa. O dinheiro deixou de ser aquele objecto utilitário que nos servia para comer e ter algum conforto, passou a ser o nosso patrão, governo, objectivo de vida, obsessão.


É uma peça de Brecht com música de Kurt Weill. Nem devia ser preciso dizer mais nada...

12 março 2006

A primeira mulher

Esta é a nova música do cantinho - "Lilith". Era para a ter posto no dia 8, mas o file lodge tem andado limitado.

Descobri a música do Pedro Guerra há cerca de um ano, e logo por este disco "Hijas de Eva". Todas as canções são sobre mulheres, sobretudo sobre as discriminações e maus tratos sobre elas. E são simultaneamente incríveis canções de amor pelas mulheres, de admiração pela força com que vivem, apesar deste mundo que discrimina a maioria das pessoas (sim, as mulheres não são uma minoria).
Esta é a última canção do disco e vem acompanhada do seguinte texto, extraído de uma conferência da Dra. Laura Borrás Castanyer:
"Muy poca gente conoce la historia de Lilith. Una historia que pese a ser oscura, hermética y opaca por la perversión y peligrosidad de su leyenda, nos explica que Lilith fue la primera mujer y no Eva.
Lilith fue la primera mujer de Adán que, habiendo sido creada como su igual, surgida del polvo, no quiso someterse a su voluntad y se separó de él."


08 março 2006

Número de azar 17

Diz-se que Einstein, já sem paciência depois de tentar explicar em vão a Teoria da Relatividade a um aluno que insistia em não compreender, lhe terá dito:

"Wenn man mit einem netten Mädchen zwei Stunden zusammen ist, hat man das Gefühl, es seien zwei Minuten.
Wenn man zwei Minuten auf einem heißen Ofen sitzt, hat man das Gefühl, es seien zwei Stunden.
Das ist Relativität."


Tradução (muito livre) para português:

Quando se passa uma hora a ouvir um bom debate político, tem-se a sensação de ter passado um minuto.
Quando se passam cinco anos com o Silva do Poço como 17º PR em Belém, tem-se a sensação de terem passado cinco décadas.
Isto é a relatividade.

E este vai ser um longo meio século!



Nota: já agora, por curiosidade, aqui vai a verdadeira tradução do texto.
"Quando se passam duas horas com uma rapariga simpática, tem-se a sensação de terem passado dois minutos.
Quando se está sentado dois minutos num fogão quente, tem-se a sensação de terem passado duas horas.
Isto é a relatividade."

Centenário de Agostinho da Silva

Hoje, em vez de um livro e porque tem pairado o espírito das efemérides, um autor.
Agostinho da Silva


A obra, para além do que disse e fez:
Sentido histórico das civilizações clássicas, 1929; A religião grega, 1930; Glosas, 1934; Sete cartas a um jovem filósofo, 1945; Diário de Alcestes, 1945; Moisés e outras páginas bíblicas, 1945; Reflexão, 1957; Um Fernando Pessoa, 1959; As aproximações, 1960; Educação de Portugal, 1989; Do Agostinho em torno do Pessoa; Dispersos, 1988

Caros Amigos
Vocês nem imaginam como me tem preocupado essa série de incidentes com imigrantes brasileiros. Como base fundamental há o meu sentimento de que sou multinacional, isto é, por ordem alfabética, brasileiro, com minha capital em Itatiaia, mesmo no cimo de seu pico de montanha, e subindo de preferência pelo túnel, lugar bravio e apaixonante, onde comecei a aprender alguma filosofia com o grande mestre que foi, pelo que sabia e pelo que era como pessoa, o grande mestre Vicente Ferreira da Silva.
Por minha mãe, que lá ficou, e por família, e por Amigos que família me são, moçambicano, sendo a capital que lhe sonho, como centro pensador de todo o Índico e de vária África interior, a extraordinária Ilha de Moçambique, moradia de poetas que só tem rival na ponta leste de Timor, e eu sempre com lembrança de sua aldeia indígena e dos monumentos e dos contactos com muçulmanos.
Por fim, solidamente de Portugal, o do Pôrto, onde nasci, modêlo de municípios, mas com avós pescadores algarvios e soldados alentejanos, sendo nele minha capital a velha Barca de Alva, a Alva que ainda está por surgir, e que me educou, fui para ela bem pequeno, a ser de aldeia do interior, pão uma vez por semana, e me ensinou a ler com perna atada à mesa para não fugir a ver lagarto e cobra, muito mais interessante que o livro da terrível obrigação. De lá, saudades de montes escalvados e do Pereira ferroviário, do tempo em que o comboio nos levava a Salamanca ou nos trazia espanhois que vinham à festa do "hornazo".
Nítida recordação da cheia do Douro de 1910, que deu como nome de baptismo a uma Amiga minha o de Crescença de Deus que acha ser o único a poder bater-se com o de outra Amiga minha, a Generosa do Céu; e com a imagem de Junqueiro, de sobretudo mal alinhado, à espera na estação do início de uma das suas viagens de coleccionador antiquário, quem sabe se mais profundo que poeta e republicano.
Quando Portugal manda embora um brasileiro está expulsando a si próprio, aquele que embarcou para o Brasil e levou, no navio de Cabral, uma Trindade Portuguesa, levando consigo o Culto do Divino, que se projecta para o futuro, criando o primeiro modêlo do que vai ser um mundo de tôdas as raças e tôdas as culturas, para que um dia rompa uma cultura verdadeiramente humana. E com firme vontade de realizar através de tôdas as dificuldades aquilo que projectou.
Mas a verdade é que Portugal, está, às vezes de mau humor, porque a lei é estrangeira e violenta, a cumprir os deveres que tomou, quando voluntariamente, talvez por solidariedade, talvez por gosto de convivência, ingressou numa Europa Comunitária que, ao que parece, ainda se julga dona daquilo a que chamou Terceiro Mundo. É contra isto que o Brasil deve revoltar-se, não contra quem respeita a Lei. Adiante se irá. E pode ser que um dia seja Brasil, com Portugal, guia do mundo, guia do sonho.
1993
Consulta da programação das comemorações do centenário do nascimento na Associação Agostinho da Silva

Bom, e agora... o CIRCO (n+2)!

Desculpem lá trazer para aqui este personagem, mas tinha que vos mostrar este video. Um programa de um certo jornalista do Independente, na fase em que se mascarava de jornalista operário, com mangas de camisa arregaçadas e geneticamente contra o poder.
E nada como uma boa galhofa a estas horas da noite...







E assim ficámos a saber que o Paulo Portas esteve quase a passar para a oposição ao seu próprio governo (só não sei que oposição o aceitaria...), e que antes mesmo de ser convidado para ministro já tinha deixado de ser amigo de Durão Barroso e depois de Santana Lopes, e ainda que o não seduzível se deixou seduzir por estes dois (já não) amigos.
Também se percebe aquele ar admirado na tomada de posse: é que isso de ministro do mar é uma coisa muito vaga...

Este video foi "fanado" ao Miguel.

07 março 2006

Hoje foi assim em Paris

Chovia. Não muito, o suficiente para ir molhando. Mas a mobilização não cedeu, nem podia. Há um mês, de Villepin dizia que estava à escuta dos que não se manifestavam. A ver pela mobilização de hoje, esse grupo deve ser constutído por ele, os (pseudo) amigos Sarko e Chirac e a presidente do MEDEF (associação do patronato). Não entendo como raio uma corja de cobardes continua a governar sozinha!

Sim, digo bem cobardes, porque apontaram a aprovação desta lei chamada de "Igualdade de Oportunidades" (que cínicos, credo!) para as férias escolares de inverno. Por isso a organização da luta foi dispersa e levou um mês a conseguir mobilizar-se.

Mas consoante as férias iam acabando nas diversas regiões, as universidades foram sendo fechadas, as AG sucederam-se.



Hoje, houve manifestações em toda a França, pelo que para a manifestação de Paris vieram as pessoas apenas da zona metropolitana de Paris. A polícia, claro, diz que estiveram em Paris 46000 pessoas. Devem ter-se enganado na frase. Sobraram no resto da cidade 46000 pessoas! Isso já eu acreditaria... É que a manifestação encheu a Place de la République no início, e ainda várias ruas laterais, porque não cabiam todos na praça. Em Nation levou horas a chegar. Eu não sei bem contar quantas pessoas são precisas para um desfile gigantesco e compacto, mas seriam de certeza algumas centenas de milhar.



As palavras mais ouvidas foram "Résistance" e "Démission". E ouvi alguns organizadores a propor fechar mais universidades, juntando-se aos protestos já em curso.



Outra coisa que reparei é que estavam lá todos: filhos, netos, pais e avós; alunos e professores. O CPE (Contrat Première Embauche) é só para jovens até aos 26 anos, mas toda a sociedade se mobiliza, num dia de frio e chuva, em solidariedade, e porque a vida dos filhos lhes diz também respeito, e mais, porque sabem que a precarização começa pelos mais frágeis, mas estende-se a todos logo a seguir.

O CPE

Às vezes dizem-me que sou tendenciosa. Desta vez, fui buscar não um texto de opinião, mas as perguntas/ respostas do próprio primeiro-ministro. Não podem é pedir-me que desligue o cérebro enquanto leio...

Primeiro, há a questão do formato. O texto da lei propriamente dita não está disponível. O que o sr. de Villepin oferece aos jovens (racaille em francês do governo - jeunes para os outros 60 milhões), é um conjunto de perguntas/ respostas bem mastigadinhas, que a canalha não percebe coisas complicadas.


Agora o texto:

CPE quer dizer Contrat Première Embauche - contrato de primeiro emprego. Destina-se a jovens de menos de 26 anos, tem um período de experiência de 2 anos durante os quais o despedimento é livre, não exclui o estágio. As empresas têm que ter mais de 20 empregados.


"1. Le CPE implique une baisse des salaires moyens pour les jeunes comme le faisait le CIP en 1994.

FAUX - Le CPE comporte une garantie de rémunération et en aucun cas, les rémunérations ne pourront être inférieures au régime commun des salariés. Le CPE n’est en aucun cas un nouveau CIP, ces deux contrats étant totalement différents l’un de l’autre. Ainsi, le CPE ne comporte aucune forme de salaire plafond."
Ok, não podem ganhar menos que o salário mínimo... Só não percebo: isto é algum motivo de contentamento? Agora temos que ficar felizes e deitar foguetes só por não nos descerem os salários?

"2. Avec le Contrat Première Embauche, on est payé qu’au SMIC.

FAUX - Le salaire versé avec le Contrat Première Embauche ne comporte aucun plafond. Comme dans tout contrat de travail, il est fixé par négociation entre le salarié et l’employeur. Il faut également savoir que l’employeur est tenu de respecter, en fonction du niveau de poste occupé par le jeune, au minimum le salaire prévu par la convention collective dont l’entreprise dépend."
O SMIC é o salário mínimo nacional. Esta questão é falsa. Em quantos primeiros empregos é que se ganha muito acima do salário mínimo?
Eu digo: em França, nem um professor universitário doutorado começa acima do SMIC.

"3. Le Contrat Première Embauche n’apporte aucun avantage au salarié par rapport à un contrat classique.

FAUX - Le droit individuel à la formation sera ouvert dès la fin du 1er mois (dans les contrats à durée indéterminée, le droit individuel à la formation ne s’ouvre qu’au bout d’un an, il n’existe pas pour les CDD)."
CDD - contratos a termo
Isto é o rebuçadinho que eles achavam que ía calar o bico ao pessoal: o direito à formação. Com tanta vantagem devem achar que ainda merecem "vivas"...

"4. Le Contrat Première Embauche est un Contrat à durée indéterminée.

VRAI - Tout comme le Contrat Nouvelle Embauche, le Contrat Première Embauche est un CDI."
O CNE é a versão CPE para empresas com menos de 20 empregados e os contratados são adultos desempregados. De resto, as condições são as mesmas.
E sim, torna-se um contrato sem termo depois da sobrevivência aos dois anos à experiência e se a empresa, ao fim desse tempo, decidir ficar com o trabalhador.

"5. Entre 18 et 25 ans, on a droit qu’au Contrat Première Embauche.

FAUX - Le Contrat Première Embauche n’a aucun caractère obligatoire ou automatique. Ainsi, parallèlement au CPE, le CDI classique et le CDD existeront toujours."
Viva, viva, viva! Afinal os outros contratos não são abolidos!
É preciso ter lata!

6. Le Contrat Première Embauche ne tient pas compte d’éventuels antécédents du salarié signataire dans l’entreprise.

FAUX - Le Contrat Première Embauche comporte une période de consolidation de l’emploi de 2 ans maximum. Or, les stages, les CDD, les missions d’intérim et les contrats en alternance effectués dans l’entreprise seront décomptés de cette période de consolidation. Ainsi, un jeune qui aurait déjà fait 6 mois stage et 6 mois de CDD dans l’entreprise n’aurait plus que 12 mois de période de consolidation.
Na mesma empresa, mas se no fim do estágio mudar de empresa, começa tudo do princípio.

"7. Les femmes enceintes se retrouvent directement menacées par le Contrat Première Embauche car il pourrait permettre à leur employeur de les licencier sans motifs durant la période d’essai.

FAUX - On ne peut pas licencier une femme enceinte pendant la période de consolidation, au même titre que dans le cas d’un CDI classique. La période de consolidation ne permet pas de jouer avec les règles de base et de mettre fin au contrat en utilisant quelque type de discrimination que ce soit."

Mas se o despedimento não precisa de justa causa, se qualquer argumento é bom, porque raio haveria um patrão de invocar precisamente a gravidez ou a côr da pele?

"8. Le Contrat Première Embauche, c’est avant tout davantage de précarité dans le domaine de l’emploi.

FAUX - Le Contrat Première Embauche prévoit des garanties spécifiques telle la protection renforcée en cas de licenciement. En effet, en cas de rupture du CPE après 4 mois, une allocation forfaitaire spécifique de 490 euros par mois, financée par l’État, sera versée pendant 2 mois au jeune lorsque celui-ci ne peut pas prétendre à l’assurance chômage.
9. La notion d’ancienneté est prise en compte par le Contrat Première Embauche en cas de rupture du contrat.

VRAI - Si le Contrat Première Embauche adapte la procédure de licenciement pendant les 2 premières années, le préavis est obligatoire et augmente avec l’ancienneté, et ce, dès la fin du premier mois."

Uau! Que magnânimes! Até mantém uma indemnização em caso de despedimento. Será que esta gentalha acha que qualquer coisa ligeiramente acima da pura escravatura os torna santos?
Mais, quem paga a indemnização não é a empresa que usou o trabalhador, é o Estado!

"10. Avec le Contrat Première Embauche, on n’a pas accès aux crédits bancaires.

FAUX - La Fédération française des banques s’engage à traiter le Contrat Première Embauche - et le Contrat Nouvelle Embauche - comme le CDI pour accorder un prêt à la consommation ou au logement."
Os banqueiros estão empenhados. Pudera! Isto do "vamos empenhar-nos" cheira-me a grandes reuniões "para decidir tudo" em hotéis de primeira tudo regado com muito champagne. Mas é ao balcão dos bancos que vamos a ver o empenho. Sem nada de concreto escrito, sem compromissos sérios, acredita quem quer. Também as desculpas para não atribuir um crédito bancário são variadíssimas, é escusado invocar que o candidato tem um CPE ou um CNE.

"11. Avec le Contrat Première Embauche, l’accès au logement est facilité.

VRAI - Afin de faciliter l’accès au logement, les possibilités offertes par Locapass seront systématiquement proposées aux titulaires de Contrat Première Embauche lors de la signature du contrat. Ce dispositif donne droit à une avance de caution remboursable sans intérêt sur 3 ans et à une prise en charge par Locapass des loyers impayés pour une durée maximale de 18 mois."
O Locapass é um sistema que oferece uma de duas possibilidades: (1) um empréstimo a 36 meses para a garantia que o proprietário exige, ou (2) a responsabilização do Estado como garante em caso de não pagamento da renda. Pois é, só que um contrato de arrendamento exige ambas. Além disso, o Locapass destina-se apenas a menores de 30 anos. E os que estão com um CNE, que não tem limite de idade?

Adicionalmente, há a saber que a mesma empresa pode contratar nestes moldes o mesmo empregado para o mesmo posto, desde que espere 3 meses.


O Paraíso na Terra para os Belmiros franceses, e para as estatísticas do desemprego, portanto. Franceses? E nós não conhecemos já a obsessão dos nossos sucessivos governos com as modas vindas de fora?

3 novas ligações

Aqui na barra lateral já estão mais 3 blogues de amigos.
O Camandro do Farpas e o Troll da Isabel, que nos ajudaram a pôr as musiquinhas aqui no Assédio.
E o da Ana Rita, uma matemática que está em Cambridge, Massachussets.

03 março 2006

A musiquinha ali do canto

Andei a tentar encontrar uma das faixas do disco de hoje, mas foi impossível. Por isso, cá vai a mesma Cathy Berberian, mas numa outra ária:

Song of Sexual Slavery é uma adaptação para inglês de uma ária da "Dreigroschenoper" (Die Ballade von der sexuellen Hörigkeit). O texto é de Bertolt Brecht, a música de Kurt Weill, e esta versão é de Luciano Berio, marido da cantora.

Cathy Berberian

À la Recherche de la Musique Perdue
Cathy Berberian e Bruno Canino




Este disco é a gravação de um concerto de Cathy Berberian com o pianista Bruno Canino na Rádio Nacional de Espanha, em 25 de fevereiro de 1974.
O reportório escolhido é irónico e muito divertido. Há canções populares, adaptações para canto/piano de grandes obras da música clássica(a quinta sinfonia de Beethoven, por exemplo), árias diversas, canções de musicais... e até o dueto dos gatos de Rossini, que, à falta de outro cantor, é feito com o próprio pianista! Além disso, ela consegue fazer uma das coisas mais difíceis para uma cantora: uma imitação de uma outra cantora que ela tinha ouvido num concerto e que não acerta uma única nota.
Para cada uma das obras ela faz uma apresentação cheia de ironia, o público ri constantemente.

É o que acontece quando se juntam dois dos melhores músicos de sempre!

01 março 2006

Paris em guerra

O Sangue dos Outros
Simone de Beauvoir

Já li este livro há alguns anos e, como costuma acontecer-me, esqueço-me da história em si, ficam as memórias (boas ou más), alguns episódios, os ambientes e os conhecimentos que me trouxe.
Lembro-me que é uma história de amor e desespero difícil de deixar a meio, e lembro-me do embarque na Place de la Contrescarpe, ali onde também morou o Hemingway. É uma praça pequena, com um movimento e ambiente de bairro, e dos poucos sítios em Paris onde ainda subsistem edifícios anteriores a Haussmann.

É nesta praça que se passa a cena mais comovente deste livro, descrita de modo tão realista, que se torna claro que a autora assistiu a estes embarques várias vezes: o de crianças judias das escolas do bairro em obscuras camionetas, que tomariam o caminho da estação de Austerlitz.
Se para nós Austerlitz quer dizer chegada, saída da miséria para tentar a sorte num bidonville dos arredores de Paris, para os franceses significa a partida de comboios de gado carregados de gente a caminho da Polónia para morrer, e para onde iam também as crianças embarcadas na camioneta. Em qualquer dos casos, Austerlitz quer sempre dizer desespero, fome, miséria e a vida deixada para trás.