05 abril 2006

Sétimo Livro à Quarta

Contos do Gin Tónic
Mário Henrique Leiria, 1973


Eu bem sabia que em 73 lançaras os Contos do Gin-Tonic e nos princípios de 74 os Novos Contos do Gin. Mas só depois da Revolução dos Cravos é que a tua prosa pega como fogo em palheiro, sucessivas edições de um e outro livro. Como é possível a surrealidade converter-se de repente em best seller? Tenho um exemplo à mão que talvez explique o fenómeno: durante a maré-cheia de Abril os meus três filhos navegam da adolescência para a juventude. E é a ti, ó Mário-Henrique, é justamente a ti que eles escolhem para figura emblemática do vendaval. Os teus contos e os novos contos do Gin-Tonic, por causa da irreverência e rebeldia, são para eles apetitosas cartas de marear. Está explicado? Faço-me entender?
Já tinhas dado à sola desta vida quando o actor Mário Viegas, no teatro e na tv, começou a interpretar os teus Contos do Gin-Tonic. Nós de olhos fixos ora no palco, ora na tela, pontaria, garra e graça, ver e ouvir, ao mesmo tempo fruir dois Mários, o Leiria a escrever, o Viegas a dizer. Pena que não tivesses assistido aos espectáculos, bem sentimos a tua falta. Em 96 o Mário Viegas passou-se para o Além, também ele. Acho que foi à tua procura.
Agora, para recordar os velhos tempos, vou beber, de enfiada, nove dos teus copos de Gin-Tonic. Aí vou eu, aí vens tu:
Os Contos do Gin Tónic publicados em 1973 seguidos em 1974 pelo Novos Contos do Gin Tónic são dois livros incontornáveis. A que se regressa. A que se deve regressar. Mais do que a corrente surrealista onde este autor andou metido também nas artes plásticas é o absurdo existencialista, aqui bem humorado, se estas coisas se quiserem arrumar um pouco, que prevalece e se torna arma. Coisa que na literarura como na arte me parece ser ou necessidade ou a mesma coisa.



"TORAH

Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
CASAMENTO
“Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.”
Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora."
1923: A 2 de Janeiro Mário-Henrique Leiria nasce em Lisboa. - 1942: É expulso, em Lisboa, da Escola Superior de Belas Artes, talvez por motivos políticos. - 1949/51: Participa nas movimentações surrealistas portuguesas, entre as quais a obra colectiva Afixação Proibida. - 1952/57: Vários empregos: Marinha Mercante, caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, etc... Viaja pela Europa ocidental e central, também pelo norte de África. - 1958: Visita a Inglaterra. - 1959: Casa, em Lisboa, com uma rapariga alemã; dois anos depois o casal irá separar-se. - 1961: “Operação Papagaio” e MHL é detido pela PIDE. Parte para o Brasil. - 1970: Regressa a Portugal. - 1973: Publica Contos do Gin-Tonic. - 1974: Publica Novos Contos do Gin. Revolução do 25 de Abril, em Portugal. - 1975: MHL é o chefe de Redacção de O COISO, suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Publica Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças e Casos de Direito Galáctico seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos). - 1976: Adere ao PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) - 1979: Publica Lisboa ao voo do pássaro. - 1980: A 9 de Janeiro morre em Cascais (degenerescência óssea).

1 comentário:

Helena Romão disse...

Eu também gosto muito destes dois livros, e há alguns destes textos que estão para mim "irremediavelmente" ligados à voz do Mário Viegas.

Parece que agora o Público vai publicar as gravações completas do Mário Viegas. Será que vou reencontrar o Galileo???