27 janeiro 2006

O monólogo de Fígaro em Paris

Eu não gosto muito de andar atrás de toda a gente. Mas hoje o maralhal inteiro anda atrás de Mozart, e quando mete Mozart, não há escapadela possível.

Antes de ter estudado melhor o assunto, porque fiz umas notas de programa para a escola na altura em que fizemos excertos das Bodas de Fígaro, eu era mais uma das que achava que as óperas (as de Mozart incluídas) contavam umas historietas de amor mais ou menos desavindo e sem mais nada.
Isto continua a ser verdade para muitas óperas, algumas eram na época o que as novelas da TVI são hoje. Mas as de Mozart são outra coisa.

As Bodas de Fígaro, por exemplo, tem uma história em que os criados se rebelam contra os patrões, e ganham, chegando mesmo a ridicularizar o patrão. Por outro lado, para conseguir este final, há duas conspirações: a das mulheres e a dos homens. E neste caso, a que leva a melhor é a das mulheres, Suzanna e Condessa juntas, que chegam a pregar um susto até ao próprio Figaro.

Esta é a parte que sobreviveu a duas censuras. A primeira foi exercida sobre a peça de Beaumarchais "La Folle Journée", escrita ali num pequeno hotel do Marais. A intenção de Beaumarchais era situar a história em Paris. Mas a censura achou que uma história destas, de criados a gozar com patrões não era possível em Paris. Quando a situou em Sevilha, acabou por passar, com cortes. É que Sevilha era naquela altura um pouco como o topo do Evereste para nós hoje em dia. Toda a gente ouviu falar, sabe-se que existe, tem-se uma ideia exótica, mas muito poucos de nós conhecem alguém que lá tenha mesmo estado. Aí, nesse lugar mítico, já se podem permitir algumas liberdades.
Nos manuscritos de Beaumarchais não utilizados na peça, encontrou-se o que seria o verdadeiro monólogo de Fígaro do início do Vº Acto (IVº na ópera): começava por uma rebelião contra o Conde de Almaviva, e num crescendo levava quase à previsão da Revolução Francesa, alguns anos depois.

O que aparece vem bastante cortado, mas ainda assim, o autor consegue denunciá-lo:

FIGARO: "...il s'est établi dans Madrid un système de liberté sur la vente des productions, qui s'étend même à celles de presse ; et que, pourvu que je ne parle en mes écrits ni de l'autorité, ni du culte, ni de la politique, ni de la morale, ni des gens en place, ni des corps en crédit, ni de l'Opéra, ni des autres spectacles, ni de personne qui tienne à quelque chose, je puis tout imprimer librement, sous l'inspection de deux ou trois censeurs."


Lorenzo da Ponte, o libretista que fez a adaptação da peça de Beaumarchais para a ópera, sofreu também uma censura, e da peça publicada já censurada, teve que cortar ainda mais. No caso do dito monólogo, que na ópera é uma ária no IV Acto, é convertida no que seria um discurso estereotipado contra as mulheres (na peça este é apenas o argumento para dar a palavra ao Figaro): que são mentirosas, e que só enganam, e traidoras... contra os patrões e a classe dominante nada, esses são intocáveis! Claro que Figaro faz este discurso porque está convencido que Suzanna o está a trair no próprio dia do casamento, mas mesmo esta conversa apenas serve para o ridicularizar logo de seguida quando a farsa é desmascarada.

Enfim, este é apenas o exemplo de uma pequena parte da peça e da ópera, para mostrar o quanto está escondido por detrás das farsas amorosas das óperas de Mozart. Todas elas têm por detrás, mesmo que com erosão das censuras várias, algum outro fio condutor de crítica social ou reflexão sobre o Mundo e a sociedade.

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