29 agosto 2004

O fado dos decapitados

No Iraque começa a tornar-se um hábito o sequestro e assassínio de jornalistas estrangeiros ou a colocação de bombas. Sabemos que são terroristas a fazê-lo. Sabemos que se torna um hábito que bandos de radicais xiitas desatem aos tiros aos soldados americanos e aos seus assalariados iraquianos. Ou seja, não sabemos nada.

As formas de resistência à ocupação de um Estado estão tipificadas no direito internacional. Ora, julgo que essas formas foram reconhecidas no rescaldo das lutas de libertação nacional em África e na Ásia colocando no centro do sistema a Organização das Nações Unidas e o equilíbrio gerado na luta entre os dois blocos da guerra fria.

O que se passa no Iraque, i.e., a invasão e ocupação militar de um Estado por um grupo de Estados contra as normas do direito internacional podia levar a que se constituíssem movimentos de resistência a essa ocupação com legitimidade para serem reconhecidos internacionalmente. Isto implicaria um movimento em dois sentidos: os resistentes têm que operar de forma a serem reconhecidos pelo sistema de Estados-nação e estes últimos têm a chave da admissão dos primeiros à maioridade política internacional, com o evidente jogo de mútua composição de códigos de reconhecimento.

Antigamente (antes de 89) a coisa passava muito pela existência de oposição aberta entre os dois blocos imperialistas, essencialmente em zonas periféricas (Afeganistão, África, Vietname, Corea, Cuba etc.). Quem queria um Estado devia namorar as forças em presença e jogar no tabuleiro militar e diplomático o reconhecimento internacional. Hoje, parece que não é tão "fácil" a manutenção ou criação de Estados com base em reivindicações nacionalistas ou simplesmente respeitadoras do direito internacional. A existência de uma única potência hegemónica à escala mundial tornou possível o bloqueio de qualquer mecanismo de reconhecimento internacional de grupos resistentes que escape ao seu controlo.

Ou seja, os EUA estão a criar uma solução muito semelhante ao que fizeram no Vietname de Sul, por exemplo. Enquanto os EUA nomeiam e fazem eleger um governo fantoche, a "comunidade internacional" de Estados, as organizações de diverso tipo e as personalidades que se têm feito ouvir contra a guerra agem como se não houvesse interlocutores válidos no terreno. São contra a ocupação do Iraque como foram contra a guerra mas são contra as formas de resistência que existem como foram contra a ditadura de Sadam Hussein. Ao nível dos Estados isso é compreensível. Não acho que seja tão líquido esse silêncio da parte das organizações e das personalidades anti-guerra.

Será que os iraquianos, apesar de não apreciarem levar com bombas ou metralhados são demasiado frouxos para se oporem a isso? Ou será que "as organizações terroristas" e os bandos de xiitas radicais no terreno são a expressão politicamente radicalizada, errática ou imatura da resistência que existe? E que não estão tão isolados nem são bandos de criminosos como nos é dado a comer via CNN?

E será que a resistência à guerra protagonizada do lado de cá caiu no politica e etnocentricamente correcto de não reconhecer formas de resistência para lá do horizonte consagrado por décadas de conflitos nacionalistas e agressões imperialistas no direito internacional? E se o direito internacional que existe se tiver tornado um espartilho para quem não aceita, debaixo de bombas e metralha, a ordem que lhe querem impôr? E se o terrorismo condenado pela CNN fosse, neste momento, a única alternativa a um governo fantoche? E se do lado de cá andamos todos a fazer o frete à CNN, ao Pentágono, à casa Branca, ao Eliseu, ao Kremlin e a todos os grandes interesses organizados na partilha dos recursos iraquianos e na estabilidade na Mesopotâmia?

Vamos todos verter lágrimas pelos jornalistas assassinados e criticar o extremismo religioso ou começar a pensar duas vezes antes de entrar no consenso mediático e no apoio a novos testas-de-ferro dos imperialismos?

Vamos começar a exigir o diálogo com os terroristas e com os radicais islâmicos? Ou será que essa exigência, da parte das organizações e personalidades anti-guerra, esbarra com os aproveitamentos políticos e mediáticos sobre os quais se foi construindo o consenso anti-guerra?

Quantas questões, quão poucas respostas...

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