21 março 2006

Manifestações em França e Portugal I - solidariedade e civismo

Nestes dois países as manifestações passam-se de modos muito diferentes. Estou a tentar fazer uma pequena comparação, mas apercebi-me de que o texto vai ficar bastante grande. Assim sendo, vou dividi-lo por pontos em posts separados. A começar hoje e a acabar... quando me parecer que disse o mais importante.


Primeiro que tudo, algo que me espantou desde a primeira vez que vi uma greve em França. Foi em Lyon, e tratava-se de uma greve de transportes. Foi uma greve total, durante dias e dias nem uma carruagem de metro ou de eléctrico, nem um único autocarro. Excepção feita à linha B de metro, que é automática, não tem condutor. Os condutores reuniram-se junto às paragens de autocarro do centro da cidade a distribuir panfletos que explicavam as motivações. A greve muitas semanas, entre dias de paragem total e outros de paragens parciais. Fura-greves, graxistas? Não, nem um.
Espantou-me a solidariedade. Provavelmente as condições de trabalho não prejudicam a todos os trabalhadores da mesma forma, mas todos se bateram. Penso que naquela altura estava em causa o regime laboral e os salários, mais baixos do que os que tinham os colegas de Paris.

Em Portugal, quando há greve, a maior parte das pessoas aproveita para fazer figura de graxista para agradar ao chefe. Também na opinião pública há diferenças. A maior parte dos franceses, admite que a greve incomoda e perturba a sua vida quotidiana (aliás, a greve é exactamente para obrigar os governos/patrões a ceder, não?), mas entendem os motivos. Os portugueses acham que "greves era só das seis e meia às sete" da tarde de domingo (obrigada, Sérgio Godinho), e que os grevistas nunca têm razão. Claro que falo de generalidades, e em ambos os países há excepções.

(continua)

20 março 2006

A polícia é sempre a polícia...


Soube-se hoje o que a polícia andou a tentar esconder desde sábado. Pisaram e bateram num sindicalista que estava sentado, e que está em coma profundo. Segundo relatos, a CRS recusou-se a chamar os socorros.
O artigo completo está no Libération ou no Le Monde. O Libération fala também num outro caso ocorrido em 86 e que custou o lugar ao PM na altura, o conhecido e repetente Chirac.


Agora, ao escrever, reparo na coincidência... também em 86 tínhamos um PM agora repetente, também agora como PR. E também nesses mandatos havia grandes cargas policiais e um caso semelhante ao francês na Ponte 25 de Abril.

19 março 2006

A manifestação de 18 de Março

Ontem tive que sair a correr da manifestação assim que cheguei ao destino, pelo que não tive uma percepção aprofundada do que se passava.

Primeiro que tudo a enorme emoção de ver tanta gente. Uma quantidade inimaginável para nós, portugueses que não estávamos no 1º de Maio de 1974. Em Denfert, no início da manifestação e 2h depois do início do cortejo, ainda havia uma concentração compacta, que transbordava para as ruas laterais. E já a manifestação tinha começado a sair dali há duas horas, sempre compacta.
Quando os últimos manifestantes saíram de Denfert, já os primeiros tinham chegado a Nation, a 5km de distância. O cortejo foi sempre compacto. 5km de cortejo compacto. Eu não imaginava o que era isso...
É pena não haver fotografias tiradas de helicóptero ou avião, para se ver melhor a mancha de gente.


Na manifestação havia gente de todas as idades. Famílias com carrinhos de bebé, crianças pequenas que repetiam apenas "Non, non, non" porque não sabiam dizer mais.
Já em casa, fiquei a saber que a própria polícia desfilou desfardada e com braçadeiras sindicais, em apoio aos manifestantes.

Ao longo do percurso adivinhava-se o que se seguiria: nas margens do cortejo, grupos muito "brincalhões" iam "brincado" aos encontrões contra montras. Sempre no meio de risota, para fazer parecer que estavam a brincar. Mas a andar muito rapidamente, iam passando mais rápidos que o cortejo, sempre a atirarem-se uns aos outros contra montras, andaimes, o que houvesse.


Mais uma vez, confirmei a ideia de que os distúrbios e a manifestação são duas coisas distintas. Os intervenientes são outros.

A Place de la Nation, onde acabava a manifestação, é uma praça semelhante ao Marquês de Pombal, mas gigantesca: uma praça redonda, tipo rotunda onde desembocam várias grandes avenidas, com um passeio redondo ao meio com uns canteiros e uma estátua. À chegada, os manifestantes viravam à direita e desmobilizavam por ali. Algumas pessoas reuniam-se frente à avenida de onde vinham os manifestantes e ali próximo.

Quando cheguei já havia um início de distúrbios com a polícia, mas à esquerda deste local: os manifestantes viravam à direita e os problemas eram à esquerda, não na avenida contígua, mas mais longe, o que numa praça daquela dimensão, é mesmo fora da manifestação. Aliás, no meio da manifestação não cheirava sequer ao gás lacrimogéneo que já estava a ser lançado no local dos problemas.


Felizmente, nem os perturbadores nem o governo conseguem o que querem. A opinião pública está cada vez mais contra o CPE e contra o governo. Numa notícia que li (não ponho ligação, porque já não me lembro onde - de qualquer modo li o Libération, o Le Monde, ouvi a TV5 e a France Info - foi num destes sítios) a popularidade do PM Villepin desceu 6 pontos só a noite passada. Ele diz... não, mentira, ele já não diz, manda o porta-voz dizer, que um milhão de pessoas na rua significa que 59 milhões estão em casa. É verdade, muitos não podem e muitos outros não se dão ao trabalho. Mas as sondagens são o que são, e já não costumam ser assim tão falseadas como isso: mesmo que o fossem, seria a favor do governo e não contra.


O que se segue

Os sindicatos de estudantes estiveram reunidos hoje. Antes da reunião, fizeram saber que os protestos vão continuar. Amanhã reunem outra vez, mas com os restantes sindicatos, associações e partidos políticos que têm apoiado o movimento. A greve geral é uma possibilidade cada vez mais presente em todos os comentários. Ninguém, repito ninguém fala em desmobilização ou fim do movimento.


Os contras

Tem havido também algumas pequenas manifestações, não contra o propósito do movimento anti-CPE, mas contra os bloqueios das universidades e liceus. Alguns estudantes vêem a época de exames aproximar-se e querem retomar as aulas. Nenhum deles (a não ser os movimentos partidários e sindicais de direita) se manifesta a favor do CPE. Só não concordam com os métodos. De qualquer modo, são pequenos grupos.



Mais uma nota: tenho pena que os protestos de ontem não se tenham junto aos protestos contra a guerra. Penso que houve um protesto na Concórdia, mas não ouvi mais nada sobre o assunto, não sei se teve gente ou não. É pena terem sido em simultâneo sem se terem junto. A invasão do Irão parece iminente, e a mobilização nesse sentido é importante. É preciso falar-lhes nas línguas que entendem: votos (ou sondagens que os prevêem) e dinheiro (sem trabalho não há lucro - greve).

17 março 2006

Cheira a azeitonas, queijo, vinho, e migas

Melro
Janita

Este ou outro disco do Janita. Pouco importa. Todos os que conheço têm uma surpresa... e todos têm a música do Alentejo. As saias, os coros, os romances...
E o Janita tem na voz essa mistura bem tradicional e alentejana de povos e gentes: ora são os ciganos, a música andaluz, árabe, lisboeta, um sem fim. Como as gentes que se cruzaram sempre por ali: judeus mais ou menos convertidos, cristãos, ciganos, árabes que foram ficando, a Espanha ali ao lado, as migrações pelo país, o trabalho sazonal por todo o lado.

(À parte: não sei quem raio inventou a ideia que se diz por aí de que a música portuguesa é pobre! Toda a vida ouvi essa frase, até da parte de músicos, e nunca percebi as razões, também ninguém mas soube explicar...)


Este disco teve a colaboração de (isto parece um desfile do melhor que houve e há no país): José Afonso, Vitorino, Pedro Caldeira Cabral, Durval Moreirinhas, António Sérgio, Luís Caldeira Cabral, um poema de Manuel da Fonseca, outro de António de Sousa, entre outros.

Como a Lotte Lenya está ali no cantinho muito descansada, e chegou há pouco tempo, adicionei o Janita logo por baixo. Trata-se do tema "Saias do Freixo", tradicional do Redondo, com arranjo de João Salomé, Vitorino e Pedro Caldeira Cabral.

António Cordeiro Lopes

Tinha 48 anos. Foi meu professor. Querido Professor, inquieto e apaixonado, qualidades que no Departamento onde trabalhou não abundam, sendo mais frequente o agastamento monótono equidistante da morta academia. O professor Cordeiro Lopes fez parte da meia dúzia de professores que fez da minha passagem pela faculdade algo em que acreditar.
No placard do Departamento de História um papel..por motivos do falecimento do colega António Cordeiro Lopes não se irão realizar as jornadas...nada mais. Por aqui se percebe como está morta a Academia. Por isso estas palavras aqui a expressar o meu profundo desgosto e pesar.
Até sempre Professor

16 março 2006

Dois pequenos apontamentos sobre a manifestação

1. Não deixa de ser irónico que os episódios de repressão e de gás lacrimogénio tenham sido num dos locais emblemáticos da Liberdade em Paris: junto ao Hotel Lutécia, que recebeu os refugiados vindos dos campos de concentração nazis, que ali ficaram enquanto esperavam a reinserção e o retorno às suas terras, assim como o reencontro com as famílias.

2. A falta de aprendizagem de história na escola deu hoje numa "mini Aljubarrota" que me deu um enorme gozo. Os distúrbios passaram-se no local de chegada da manifestação, o cruzamento Sèvres-Babylone. A manifestação levou mais de uma hora a chegar e, como de costume, fechava com uma coluna policial. Bom, a certa altura, o cruzamento estava rodeado de polícia e os manifestantes dentro de um cordão policial (ainda não completamente fechado, podia circular-se pelas bermas das ruas). Os polícias que vinham atrás da manifestação (uns 20) decidiram apertar o cerco e começaram a avançar, mandando os manifestantes passar para trás deles. E uma parte dos manifestantes obedeceu calmamente.
Resultado: os 20 palermas deram por si rodeados de manifestantes por todos os lados, assobiados, alvo de chacota. Tiveram que retirar com o rabinho entre as pernas, direitinhos e em filinha, para uma rua mais apertada onde podiam defender-se atrás das barricadas de plástico.
Só depois é que se passaram os acontecimentos que descrevi no post anterior, no número 4.

Esclarecimento relativo à notícia de abertura do Telejornal na RTP às 20h00

1. O desfile foi composto por alunos do ensino superior e secundário, professores, pais, sindicatos e partidos políticos.

2. Os grupos "mais radicais" era um pequeno grupo de 40 ou 50 pessoas, o que num universo de centenas de milhar de manifestantes é ínfimo.

3. O gás lacrimogénio foi usado repetidas vezes na rua - sempre seguido durante pelo menos hora e meia - não só contra esse grupo de 40/50 pessoas, mas para o meio da manifestação (onde estavam grupos de pessoas a conversar calmamente, de mãos nos bolsos...). A estação de metro de Sèvres-Babylone foi igualmente gaseada, atingindo assim milhares de pessoas, dado que se trata de uma estação central onde se cruzam três linhas e que, num espaço fechado, o gás fica concentrado muito mais tempo, atingido todos os que ali passem durante várias horas.

4. As "contidas" forças da polícia de choque (CRS), chegaram a fechar todo o cruzamento da Rue de Sèvres e os acessos ao metro para quem vinha do recinto da manifestação, impedindo a saída e a dispersão dos manifestantes não envolvidos nos distúrbios (que aliás estavam num outro ponto do cruzamento). Depois começaram a avançar na avenida, batendo com os bastões nos escudos, onde estavam três grupos: um grupo de percussionistas rodeados de público a dançar e bater palmas, um outro grupo de manifestantes sentados calma e pacificamente no chão e ligeiramente afastada uma rapariga sozinha frente aos polícias, sentada a ler (bem, que ameaça!!!). eu estava frente a tudo isto, encostada a uma montra de um café. Logo ao meu lado, um grupo de raparigas adolescentes, muito novas, gritavam que só queriam sair dali e ir para casa. A única intenção que se consegue encontrar neste bloqueio é a de provocar reacções de pânico, tendo assim uma boa desculpa para atacar.

Livro com música - 2. a música

Bom, o óbvio seria ter posto o "Moon of Alabama". Mas isso toda a gente conhece, nem que seja na versão dos Doors.

Aqui temos Lotte Lenya,a mulher de Kurt Weill, no papel de Jenny a cantar "Meine Herren, meine Mutter prägte": "Meus senhores, a minha mãe previu". Acompanhada Heinz Sauerbaum, Gisela Litz, Horst Günther, Georg Mund, Fritz Göllnitz, Sigmund Roth, Peter Markwort, richard Munch, os Norddeutscher Radio-Chor e Orchester, dirigidos por Wilhelm Brückner-Rüggeberg.

15 março 2006

Livro com música - 1. o livro

Um livro, uma ópera.


Bertolt Brecht
Grandeur et décadence de la ville de Mahagonny

O original, na verdade é "Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny", e em português seria algo como "Ascensão e queda da cidade de Mahagonny".

Fundada sob o mote "nada é proibido, tudo é permitido e tudo pode ser comprado", a cidade destrói-se a ela própria, consequência última da vida com este mote.

Introdução ao número 19 (tradução do francês): "Execução e morte de Paul Ackermann. Sem dúvida muitos espectadores sentir-se-ão incomodados ao ver a próxima cena, em que se assiste à execução de Paul Ackermann. Mas pensamos que estes mesmos espectadores não consentiriam a pagar a dívida dele. Este é o respeito que o dinheiro hoje nos inspira."

Era assim que Brecht via a Humanidade em 1930. Passaram 76 anos. Não me parece que maior parte das pessoas tenha mudado. A peça mantém toda actualidade, quem sabe até mais. O consumismo e a ditadura da economia e do dinheiro impõem-se mais a cada dia que passa. O dinheiro deixou de ser aquele objecto utilitário que nos servia para comer e ter algum conforto, passou a ser o nosso patrão, governo, objectivo de vida, obsessão.


É uma peça de Brecht com música de Kurt Weill. Nem devia ser preciso dizer mais nada...