Fernando Ramalho
A greve geral dos escravos
Na sua obra maior, The Black Reconstruction in America 1860-1880, publicada em 1935, o sociólogo e historiador norte-americano W.E.B. Du Bois fornece-nos uma inovadora perspectiva sobre a Guerra Civil Americana (1861-1865), o seu desenrolar, desfecho e consequências. Na abertura do célebre quarto capítulo do livro, intitulado «Greve Geral», uma frase de resumo do capítulo dá o mote para uma verdadeira inversão no modo como tanto a historiografia quanto a militância política olhavam, na América pós-Depressão – como, na verdade, sempre olharam antes –, para a história da Guerra Civil: «De como a Guerra Civil significou emancipação e o trabalhador negro venceu o conflito através de uma greve geral que transferiu o seu trabalho do plantador confederado para o invasor do Norte, em cujas frentes de batalha começaram a ser organizados como uma nova força de trabalho.»
Ao definir a fuga em grande escala de escravos das plantações1 em direcção às linhas da frente do exército da União como uma greve geral, ou seja, como um movimento em que uma enorme massa de trabalhadores deserta do seu trabalho procurando com isso melhorar as suas condições, Du Bois baralha as contas a quase todos os seus leitores. Por um lado, aos académicos liberais, que sempre viam os escravos como uma massa amorfa, inferior e incapaz de qualquer agencialidade, formulando a história como uma grande obra do poder e das elites. Por outro, e com consequências políticas semelhantes, aos pensadores e militantes de esquerda e marxistas2, habituados a circunscrever esquematicamente a classe trabalhadora à condição do assalariamento, considerando os escravos numa posição fora dos limites do proletariado e, por conseguinte, da possibilidade de aquisição de uma consciência de si enquanto potência anticapitalista. Aos primeiros, a intelectualidade liberal, Du Bois inverte a tese de que a abolição da escravatura se devera ao progressismo dos líderes da União, ou mesmo que esse tivesse sido desde o início o tema central da guerra. Du Bois mostra como, pelo contrário, o tema da abolição da escravatura estava ausente dos propósitos da União na sua resposta à secessão dos Estados do Sul e como foi introduzido no conflito pela entrada em cena dos escravos enquanto sujeito, ou seja, pela sua greve geral que deslocou centenas de milhares das plantações para as linhas da União, quer como força militar quer, sobretudo, como força de trabalho. Ao mesmo tempo, a densificação que a tese de Du Bois empreende sobre o conceito de classe constitui um contributo inestimável para o pensamento marxista, ainda que, no contexto da hegemonização estalinista, se tenha mantido uma visão ultraminoritária, condição em que se manteria por muito tempo
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