20 novembro 2006

Dos programas mínimos e máximos

" (...) Porque a finalidade última não é um estado que espera o proletariado no fim do movimento, independentemente deste movimento e do caminho que ele percorre, um "Estado do futuro"; não é um estado que se possa, por conseguinte, esquecer tranquilamente nas lutas quotidianas e invocar, quando muito, nos sermões de domingo, como um momento de elevação oposto às preocupações quotidianas; não é um "dever", uma "ideia", que desempenhe um papel regulador em relação ao processo "real". A finalidade última é, antes, esta relação com a totalidade(com a totalidade da sociedade considerada como um processo), pela qual cada momento da luta adquire o seu sentido revolucionário; uma relação que é inerente a cada momento precisamente no seu aspecto quotidiano, o seu aspecto mais simples e mais prosaico, mas que só se torna real uma vez que dela se tome consciência e se confira assim a realidade do momento na luta quatidiana, manifestando a sua relação com a totalidade; desse modo, é este momento da luta quotidiana elevado do nível da artificialidade, da simples existência, ao da realidade. É preciso não esquecer igualmente, entretanto, que todo o esforço para conservar a"finalidade última" ou a "essência" do proletariado sem mácula nas e pelas relações com a existênica-capitalista-conduz-nos, em última análise a afastarmo-nos da apreensão da realidade, da "actividade crítica prática", a cair de novo na dualidade utópica do sujeito e do objecto, da teoria e da praxis, tão seguramente como o revisionismo a isso conduziria.



O perigo prático de todas as concepções dualistas deste género é o de fazerem desaparecer o momento que dá à acçãoa sua direcção. Com efeito, logo que abandonamos o campo da realidade, que só o materialismo dialéctico pode conquistar (mas que tem que ser incessantemente reconquistado) logo que nos confinamos, portanto, ao campo "natural" da existência, do puro, simples e grosseiro empirismo, o sujeito da acção e o terreno dos factos em que se desenrola a sua acção passam a opor-se um ao outro, como princípios separados sem mediação possível. E é tão pouco possível impôr a vontade, o projecto ou a decisão subjectivas ao estado de facto objectivo como descobriri nos próprios factos uma directiva para a acção. Nunca houve uma situação em que os "factos" se exprimissem inequivocamente a favor ou contra uma direcção determinada da acção, nem pode haver, nem haverá nunca. Quanto mais escrupulosamente examinamos os factos no seu isolamento (isto é, nas suas concepções mediatizadas) menos estes podem indicar, sem ambiguidades, uma direcção determinada. É também óbvvio que, inversamente, uma decisão puramente subjectiva deve por força entrar em choque com o poder dos factos não compreendidos e que operam automaticamente "em conformidade com as leis". Assim, o modo como o método dialéctico aborda a realidade manifesta-se no precioso momento em que se aborda o problema da acção como a única capaz de indicar uma orientação para a acção. O conhecimento de si, subjectivo e objectivo, que o proletariado tem numa etapa determinada da sua evolução é simultaneamente conhecimento do nível atingido nessa mesma época pela evolução social. Na coerência do real, na relação de cada momento particular com as suas raízes (na totalidade), raízes que lhe são imanentes-mas que apenas não tinham sido postas a descoberto-suprime-se o carácter estranho desses factos que agora compeendemos: passamos a aperceber-nos das tendências que apontam para o centro da realidade-aquilo a que se costuma chamar a finalidade última. Esta finalidade última não se opõe, porém, ao processo, como idela abstracto: como momento que é da verdade e da realidade, como sentido concreto de cada etapa atingida, é imanente ao momento concreto; por isso o seu conhecimento é precisamente o conhecimento da direcção que tomam (inconscientemente) as tendências dirigidas para totalidade, da direcção que é chamada a determinar concretamente no momento dado a acção justa, do ponto de vista e do interesse do processo de conjunto, da libertação do proletariado.


Contudo, a evolução social incrementa sem cessar a tensão entre momentos parciais e a totalidade. É precisamente porque o sentido imanente da realidade irradia com um clarão cada vez mais forte que o sentido do devir é cada vez mais profundamente imanente à vida quotidiana e que a totalidade está cada vez mais escondida nas manifestações momentâneas espaciais e temporais dos fenómenos. O caminho da consciência no processo histórico não se aplana, pelo contrario, torna-se crescentemente mais árduo e faz apelo a uma responsabilidade cada vez maior. A função do marxismo ortodoxo -supeação do revisionismo e do utopismo-não é, pois, a de liquidar de um só golpe as falsas tendências, é uma luta constantemente reatada contra a influência perversa do pensamento burguês sobre o pensamento do proletariado. Esta ortodoxia não é a guardiã das tradições, é a anunciadora sempre alerta da relação entre o instante presente e as suas tarefas em relação à totalidade do processo histórico. E assim, as palavras do Manifesto Comunista sobre as tarefas da ortodoxia e dos seus portadores, os comunistas, não envelheceram e continuam válidas: "Os comunistas só se diferenciam dos outros partidos proletários em dois pontos: por um lado, nas diversas lutas nacionais dos proletários, avançam e fazem valer interesses comuns a todo o proletariado e independentes da nacionalidade; e por outro lado, nas diversas fases que atravessa a luta entre o proletariado e a burguesia, representam constantemente o interesse do movimento total"."
G.Lukács, "O que é o marxismo ortodoxo?" (1919) - História e Consciência de Classe, Publicações Escorpião, Porto, 1974, pp.38-40

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