"(..)Tenho porém por certo que a resposta a esta particular dúvida não pode ser dada pela ciência, até porque esta interrogação sobre a hipotética existência de “vida humana” oculta, na verdade, a questão (metafísica) de saber se um feto com dez semanas ou menos é uma “pessoa” ou não. Parece óbvio que a maior parte das pessoas realmente existentes não acha que o seja, nem que fazer um aborto seja equiparável a matar alguém; prova disso são as dezenas de milhares de abortos que se fazem todos os anos em Portugal (e não há dezenas de milhares de assassinas entre nós) e o próprio facto de a lei que pune o aborto puni-lo muito mais brandamente que o infanticídio. Mas isto é uma consideração de ordem sociológica; agora respostas de natureza científica a esta questão, como disse, não existem: o que existe são crenças, são fés - mas essas, por definição, são insusceptíveis de discussão. Debater se um feto com menos de dez semanas é ou não “vida” é assim um debate de surdos, que não leva a rigorosamente nada; procurar impor por lei, e logo na lei penal, uma das posições desse debate – que um feto às dez semanas é “vida” e por isso deve ser protegido - é negar a dúvida e praticar a intolerância: ou concordas comigo ou vais para a prisão. Não é isto a “fé única”? Que a diferença faz da Santa Inquisição? Ora há formas de o “sim” e o “não” debaterem sem ser através do choque de absolutos metafísicos indiscutíveis, do género: “o direito à vida” versus “o direito ao corpo”. Por exemplo, já aqui aplaudi (e fartei-me de levar pancada de apoiantes do “sim”) um artigo favorável ao “não” que dizia mais ou menos isto: como nem toda a gente está de acordo (nem nunca há-de estar) quanto a saber se um feto com dez semanas ou menos é uma pessoa ou não, não será melhor, nessa incerteza, seguir o “princípio da precaução” e estender-lhe a protecção da lei penal? Eu não estou de acordo com esta posição, e também já expliquei porquê, mas acho que o princípio de que ela parte está certo e que aquilo que defende faz sentido: verifica a impossibilidade de discutir metafísica e procura, pragmaticamente, estabelecer as bases de uma discussão sobre a gestão política da questão do aborto – que tem, evidentemente, fundíssimas implicações éticas, mas que é também (e é por isso que é objecto de um referendo) um problema social e de saúde pública. É assim tão difícil de perceber?(...)"
António Figueira, "Parece que não me fiz entender" in Cinco Dias
2 comentários:
pois, citações...
Anda muita confusão a toldar a claridade desta questão. Até parece que vamos votar contra ou a favor do aborto... A preocupação fundamental para mim está na manipulação da informação, no facto de provavelmente a maior parte das pessoas não perceberem que vão votar contra ou a favor da discriminalização...
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