23 novembro 2012

Porque não estamos sós

"Para concretizar um pouco melhor esta ideia, recorro agora à citação modificada de uma crónica que o Rui Tavares acaba de publicar. A modificação que introduzi foi só uma: onde o Rui escreveu "esquerda", eu escrevi "democracia", a fim de acentuar não a defesa ou afirmação destes ou daqueles interesses ou necessidades particulares, mas a exigência de igualdade de poder que é condição de um governo livre. A passagem da crónica, depois de intervencionada, diz o seguinte:

'Mais do que uma doutrina ou uma ideologia, a democracia [esquerda] é a aliança daqueles que não são ricos nem poderosos. A democracia [esquerda] é uma aliança de pessoas livres e iguais, fraternas entre si na mesma dignidade.
'Sendo os ricos e poderosos naturalmente poucos, a democracia [esquerda] terá de ser, para ter força, a união dos muitos. E esses muitos são - como é evidente - muito diferentes uns dos outros. Não são, não podem ser, todos da mesma seita. Não têm, e não podem ter, todos os mesmos objetivos de futuro, a mesma visão do mundo, ou o mesmo estilo de vida. Isso é impossível, e a democracia [esquerda] que é democracia [esquerda] luta para que isso seja impossível, e para que ainda assim haja unidade entre os muitos, os que não são ricos nem poderosos, os que se arriscam a ser lixados se não souberem fazer uma aliança'. (...)

Se "a democracia é uma aliança de pessoas livres e iguais", a organização de um movimento que a tenha por fim, terá de a ter também por meio e forma de organização. Ora, se todo o movimento é um poder e comporta relações de poder, o primeiro regime de exercício do poder a democratizar por uma "aliança de pessoas livres e iguais" é o da organização e direcção do próprio movimento. Esta democratização é condição necessária da que o movimento propõe no que se refere ao governo da sociedade.

As mesmas razões fazem com que as lutas e acção política do movimento visem a extensão e generalização da participação igualitária, responsável e regular - auto-organizada ou autónoma -, de cada cidadão nas decisões comuns, que vinculam a existência colectiva e a gestão das suas condições. O regime democrático resultante de "uma aliança de pessoas livres e iguais" é o de uma forma de governo ou exercício do poder cuja legitimidade implica a igual possibilidade de participação governante de cada um dos cidadãos governados.

Na medida - hoje enorme - em que a economia é uma instância determinante ou um campo de relações de poder decisivo no governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível, no sentido que tenho vindo a indicar, do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar a transformar essa mesma economia. Esta democratização da economia tem vários níveis, sendo importante insistir nesse aspecto: implica, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica, etc. (...)
Se o que disse até aqui contém as bases que poderiam funcionar como uma plataforma ou projecto de democratização, vemos agora que essas bases configuram um denominador comum que não precisa de optar por uma das "grandes narrativas" ou tradições rivais que conhecemos, nem de as substituir por uma nova grande narrativa ou concepção do mundo unificada. Pode, em contrapartida, reunir gente que vem de tradições e horizontes diversos e cujas antecipações dos conteúdos substantivos de uma sociedade autónoma permanecem abertas ao debate. Não é que a ideia de democracia para que remete a descrição do Rui Tavares seja neutra ao nível das concepções do mundo ou que os conteúdos substantivos, os investimentos da vontade, os objectivos visados pelos que se identifiquem com o projecto de democratização, não sejam importantes. Efectivamente, quem quer a liberdade de decidir em pé de igualdade com todos os outros do governo das dimensões comuns ou colectivas da sua própria existência, quer essa liberdade em vista de alguma coisa a que poderíamos chamar aristotelicamente as condições de uma vida boa. O que aqui se sustenta é que essa questão essencial e múltipla só pode ser plenamente posta e indefinidamente retomada por todos e cada um daqueles a quem diz respeito através de uma acção de democratização instituinte cujos critérios e formas de organização procurei indicar acima."


Miguel Serras Pereira, nos comentários da Unipop ou no Vias de Facto

Sem comentários: