Se seguirmos alguns autores[1] que se debruçaram sobre a história curda, podemos situar a questão da nacionalidade como dinâmica do seu desenvolvimento no período que se seguiu ao fim da I Grande Guerra. De facto, este período foi pródigo, no velho continente, em movimentos nacionais, bem como na constituição de novas fronteiras. Este período é considerado actualmente pelos curdos como a melhor oportunidade que houve para a constituição daquilo que esperariam vir a ser o Estado Curdo. A análise do PKK sobre a não rectificação deste ponto no Tratado de Lausanne incide sobre a própria estrutura da sociedade curda, que, dado o seu arcaísmo, a sua organização em famílias ou clãs que sustinham hierarquicamente uma sociedade baseada em actividades do sector primário, aliado a uma história milenar de ocupação que transformou o Curdistão em campo de batalha de persas e otomanos, não permitiu que esta sociedade tão desorganizada pudesse aproveitar da especial circunstância de não haver, durante esta altura, potências com capacidades de ocupação ou estabelecimento na região.
“ The Sheikh Said rebellion, then, was a prototype of a post-World War I nationalist rebellion. Its weakness were the usual ones: inter-tribal rivalry and Sunni-Shi‘i differences (...) These cleavages were exacerbated by the Naksibandi/non Naksibandi differences as well. These, rather than the differences between Zaza and non-Zaza speakers, played an important role in the evolution of the rebellion and in the growth of Kurdish nationalism. Urban-rural cleavages, tribal-peasant and landowner-tribal hostilities, and antithetical secular- religious orientations among its leaders all contributed to its lack of success.”[2]
A revolta do Sheikh Said liderada pela cidade de Azadi de 1921 a 1925, foi entendida até aqui pela maior parte dos autores ocidentais e orientais, como uma rebelião reaccionária contra as reformas seculares do novo Estado turco. Uma resistência religiosa, liderada por Sheikhs , ou seja, por uma elite, que beneficiava da falta de um poder centralizado. Poder que crescia pela necessidade de modernização do Estado turco, ou seja, para que este pudesse acompanhar o desenvolvimento económico imposto pelas potências vencedoras da I Grande Guerra. “ As exigências técnicas do moderno Estado administrativo ajudaram, uma vez mais, a alimentar a emergência do nacionalismo”.[3]
Segundo a perspectiva dos autores que estudaram a revolta de Sheikh Said, ela constitui um ponto de viragem no discurso curdo e é mais do que uma reacção imediata às medidas centralizadoras do recém Estado turco. É a primeira manifestação numa escala significativa do nacionalismo curdo. “ Martin van Bruinessen, the only scholar who has studied the rebellion in detail, has stated emphatically that “the primary aim of both ( Sheikh Said and the Azadi leaders) was the establishment of na independent Kurdistan.” Sheikh Said is an example of a man who was simultaneously an ardent nationalist and a committed believer “.[4] Embora múltiplos interesses pudessem ocultar-se melhor ou pior na revolta de Sheikh Said, como a necessidade de proteger terras e direitos sobre populações ( hipoteticamente até mais pesados do que se fossem garantidos pelos turcos); a não aceitação da abolição do califado, a verdade é que daí em diante, na revolta de Zeylan ( 1930) e de Agri ( 1926-1932) por exemplo, os slogans nacionais iriam ser utilizados em abundância. E é também um facto de que a vontade ou o sentimento da constituição de uma nação traduzem-se, geralmente, num discurso de elite. “ (...) independentemente da natureza dos grupos sociais captados pela “consciência nacional”, as massas populares –os trabalhadores, os empregados, os camponeses –são os últimos a serem afectados por ela”.[5] Mas o mesmo autor também diz que é um “ fenómeno dual, construído essencialmente a partir do topo, mas não pode ser compreendido se não for analisado igualmente a partir da base, isto é, em termos das associações, das esperanças, necessidades, desejos e interesses do povo, não sendo estes necessariamente nacionais nem nacionalistas”.[6]
Para Robert Olson a revolta de Sheikh Said reveste-se de importância fundamental para compreender a evolução política do novo regime na Turquia. De facto, para a supressão desta revolta alargada, no tempo e no espaço (os sheikhs não deixaram de ter contacto com outros pontos de rebelião, nomeadamente no Iraque e em Istambul), a Turquia construiu um manancial de instrumentos que acabaram por ser usados na consolidação do novo regime e na liquidação da oposição interna ao governo kemalista. “ The point that I wish to make here is that the machinery to facilitate the crushing of the opposition both politically and legally was put into place in the effort to suppress the Sheikh Said rebellion. Ironically, many of those sentenced to death in the Izmir plot [conspiração para assassinar Mustafa Kemal] had voted for the very independence tribunals to which they fell victim. While the Kemalists had to wait until the purges of June-July 1926, nearly a year after the suppression of the Sheikh Said rebellion, to rid themselves of remaining opposition, the formal and organized opposition as represented by the Progressive Republican party was eliminated when the party was banned on June 3 in 1925”.[7]
O nacionalismo curdo chocava assim num outro, o turco, mais poderoso e com mais possibilidade de sucesso dado o seu carácter abrangente; o nacionalismo curdo reivindicava uma nação curda, ao contrário da nação turca, que abrangia aquela. “(...) a construção de nações foi vista inevitavelmente como um processo de expansão (...) era aceite, em teoria, que a evolução social expandia a escala das unidades sociais e humanas de família e tribo para país e cantão, do local para o regional, o nacional e, eventualmente, o global (...) isto queria dizer que se esperava que os movimentos nacionais fossem movimentos para a unificação ou expansão nacional (...) a heterogeneidade nacional dos Estados-nação era aceite, acima de tudo, porque parecia evidente que as pequenas nacionalidades, e especialmente as pequenas e atrasadas, teriam tudo a ganhar se se unissem a outras nações e, através destas, dessem os seus contributos à humanidade”.[8] Esta era uma ideia liberal de nação, mas subsiste e perpassa o espírito wilsoniano do pós guerra. Não se quer com isto dizer que o não reconhecimento da nação curda se deveu a este espírito mas somente referir que o nacionalismo turco era mais poderoso pelo seu carácter unitário. Também se pode daqui inferir que o nacionalismo curdo, contextualizado historicamente, se deveu, como deve, actualmente, ao confronto com o nacionalismo turco, que, se não inventou a nação curda, foi, no entanto, responsável pela sua dinamização. A isto não deve ser alheio o facto de ser precisamente na Turquia que se desenvolveu e desenvolve o mais consistente e sistemático pólo de resistência curda (é esta também a zona mais desenvolvida do Curdistão), apesar dos curdos identificarem e reivindicarem como o Curdistão um território que abrange, para além de boa parte da Turquia, parte da Síria, do Iraque e do Irão. Território que coincide com a permanência do povo curdo ao longo da História. Mas antes do nacionalismo turco também é verdade que “na era clássica do liberalismo poucos deles, fora do Império Otomano, realmente pareciam fazer reivindicações de reconhecimento como Estados soberanos independentes, distintas de reivindicações de vários tipos de autonomia (...) Não seria de mais dizer que, a partir de 1871 – exceptuando sempre a lenta desintegração do Império Otomano -, poucas pessoas esperavam mais algumas mudanças substanciais no mapa da Europa”.[9]
A revolta de Sheikh Said demonstrou uma força militar curda considerável, devida ao contacto com a novas armas e tecnologias bélicas quando participaram nos exércitos otomanos, persas e britânicos. No entanto esta vantagem não foi acompanhada da força da diplomacia, igualmente moderna. Demonstrou também uma enorme vulnerabilidade política e no terreno dado o desaparecimento dos Arménios, que haviam constituído uma espécie de estado-tampão. Ironicamente os curdos tinham participado na deportação e massacre turco deste povo.( desde 1915). “ (...) A expulsão em massa e até mesmo o genocídio surgiram perante todos nas margens do Sul da Europa, durante e após a I Guerra Mundial, quando os Turcos começaram a extirpação em massa dos Arménios em 1915 e após a guerra grego-turca de 1922 ter expulsado entre 1,3 a 1,5 milhões de gregos da Ásia Menor, onde tinham vivido desde os tempos de Homero”.[10] A migração em massa foi um dos fenómenos marcantes do período pelo nível até aí nunca verificado. A diáspora de povos serviu também para acalentar fortes sentimentos nacionais.
Outro agente importante a ter em conta na rebelião de Sheikh Said e na sua subsequente repressão foi o império britânico e a sua tentativa de controlo no Médio Oriente depois da I Grande Guerra. De 1922 a 1925 levam a cabo inúmeros bombardeamentos aéreos sobre curdos e árabes no norte do Iraque. Ataques aéreos que repetirão no Sudão, e na Palestina, por exemplo, demonstrando o seu poderio bélico que acompanhava anseios colonizadores daquelas regiões. A Turquia retira deste tipo de acção um exemplo prático para a sua acção de domínio na região, adquirindo extenso material aéreo e varrendo os ares em inúmeros ataques pelo Curdistão.
[1] Como Robert Olson, Erik Jan Zurcher, Metin Toker.
[2] Olson, Robert, “The emergence of Kurdish Nationalism and the Sheik Said Rebellion, 1880-1925”( conclusion), Austin, University of Texas Press, [ s.d.].
[3] Hobsbawm, Eric, A Questão do Nacionalismo, nações e nacionalismo desde 1780, Lisboa, Terramar, 1998 ( edição original 1990), p.94.
[4] Olson, Robert, Idem.
[5] Hobsbawm, Eric, Idem, p.15.
[6] Ibidem, p.14.
[7] Oslom, Robert, Ibidem.
[8] Hobsbawm, Eric, Idem, pp. 32-34.
[9] Hobsbawm, Eric, Idem, p.37 e p.41.
[10] Ibidem, p.129.
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