12 abril 2007

sobre Carmona,a câmara, a cidade

Rui Tavares sublinha o mais importante da atitude de limpeza zelosa por parte da CML que nos deixou estupefactos. O mais importante, onde fica a cidade pública, política, espaço dos cidadãos? Cidadãos em Lisboa não há nenhuns enquanto cidadania não puder ser feita cá.


[Público, 09 abril 2007]

Um país de ironias

Para pagar os favores que deve às empresas, a CML é relaxada. Para os cidadãos fazerem política ou cultura ou arte a CML é rigorosa.
Para os leitores que não vivem na capital, vamos contextualizar: na maior parte dos dias, não se dá pela existência da Câmara Municipal de Lisboa [CML]. Quando ela se faz notar, é invariavelmente pelas más razões.
Quando a CML desperta da sua hibernação, a suspeita é que vem aí disparate. E na sexta-feira passada (um feriado!) a CML decidiu fazer horas extraordinárias para confirmar essa suspeita. Por uma vez, nesta cidade onde um prédio pode cair antes de uma folha de papel transitar entre gabinetes, a CML foi célere.
E nesta cidade entupida de poluição visual, a CML foi célere para arrancar talvez o único cartaz de grandes dimensões que recebeu os louvores quase unânimes de todo o país, da esquerda à direita: a sátira dos “Gatos Fedorentos” ao cartaz racista do PNR ali ao lado.
(Digo “quase unânime”, porque os racistas reagiram mostrando a sua face, com ameaças de violência física e a divulgação do endereço do colégio onde estuda a filha de um dos humoristas. Como sempre, estes cobardes incitam ao ódio na esperança de que alguém faça o trabalho sujo.)
Enfim: durante uma semana, o país discutiu qual seria a resposta adequada aos racistas. Quando os “Gatos Fedorentos” no-la deram de forma brilhante, esta CML a quem nunca se viu grande queda para o legalismo decidiu que não constituindo eles um partido político, a sua mensagem era publicidade. Neste raciocínio binário só há partidos que fazem propaganda ou empresas que fazem publicidade. Todos nós outros que andamos aqui, cidadãos deste país, eleitores, contribuintes e consumidores, somos parentes menores.
É verdade que a lei prevê regimes diferentes para a propaganda partidária e para a publicidade. Mas isso acontece para impedir as empresas de tomar conta de todo o espaço público, não para dificultar a intervenção cívica. Ora o cartaz dos “Gatos Fedorentos” pode não ser propaganda partidária mas não é certamente publicidade; é antes enquadrável como intervenção artística e deveria ser interpretada com a folga que a lei permite.
Reparem que esta é uma obsessão particular de Carmona Rodrigues: em plena crise da sua vereação saiu para a rua de mangueira em punho para arrancar cartazes de bandas rock. Só que é uma obsessão estranha para quem preside à principal poluente visual da capital e das suas praças emblemáticas, desde o tempo em que Santana Lopes encheu a rotunda com imagens do Marquês defendendo a construção de um túnel, até aos enormes cubos que o Casino de Lisboa colocou por todo o lado, até às massivas esferas da Volkswagen que pagaram a iluminação de Natal. Sob qualquer pretexto até no Terreiro do Paço a CML deixa instalar objectos publicitários de mau gosto. A diferença é que essas empresas contaram com o beneplácito de uma câmara falida. A CML vê o espaço público como um activo publicitário e fonte de receitas. A rua é dela apenas; serve para alugar às empresas e tolerar os partidos. Qualquer outro cartaz – desde o anúncio de uma banda amadora até aos “Gatos Fedorentos” ridicularizando os racistas – é concorrência desleal.
Para pagar os favores que deve às empresas, a CML é relaxada. Para os cidadãos fazerem política ou cultura ou arte a CML é rigorosa.
Resta somente apreciar mais esta genial ironia de um país de ironias, cuja capital é governada por Carmona Rodrigues, engenheiro. É um engenheiro a sério, daqueles com diploma e carteira da ordem. Não percebe é rigorosamente nada de cidades, de liberdade ou de política.

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