08 janeiro 2004

" Não vale a pena lutarmos, basta esperar, já que tudo acaba por passar na rua. No fundo só ela conta. E porque não? Espera por nós. É preciso descermos á rua, decidirmo-nos, não um, dois ou três dos nossos, mas todos. Ficamos lá, a fazer cerimónias e salamaleques, mas a coisa acaba por acontecer.
Em casa é que nada acontece de bom. Mal uma porta se fecha atrás de um homem, ele começa logo a deitar cheiro e tudo quanto traz consigo também. Faz-se logo ali ultrapassado de corpo e alma. Apodrece. Se cheiram mal, os homens, é muito bem feito. Deviámos prestar-lhes mais atenção! Devíamos faze-los sair, expulsar, expor. Os tipos que cheiram mal vão arrebicar-se para o quarto, e assim mesmo deitam cheiro.
Falando agora de famílias, eu cá sei de um farmacêutico da Avenida de Saint-Ouen que pôs um belo anúncio, um lindo reclamo na montra:"Para purgar uma família inteira, três francos a caixa"! Um sarilho! toda a gente arrota! Numa família é tudo em conjunto! Odeiam-se até deitar sangue, o verdadeiro lar é assim mas ninguém protesta porque é menos caro, ao cabo e ao resto, do que viver num hotel.
O hotel, falemos agora dele, é mais inquieto, não tem o ar pretensioso de um apartamento, sentimo-nos lá menos culpados. A raça humana nunca se mantém tranquila, e para nos aproximarmos do julgamento final, que há-de desenrolar-se na rua, o hotel é evidentemente onde estamos mais perto. Os anjos com trompetas podem lá chegar, e os primeiros vamos ser nós, os que sairmos do hotel."

Céline, Viagem Ao Fim Da Noite

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