17 janeiro 2004

" Livre-me Deus de eu estar aqui a querer atacar ou destruir o juramento de respeito pela propriedade que toda a nação ainda há pouco tempo pronunciou; mas dais-me licença de que exprima certas ideias sobre a injustiça de semelhante juramento? Qual é o espírito de um juramento feito por todos os indivíduos de uma nação? Não será manter uma perfeita igualdade entre os cidadãos, submetê-los a todos igualmente à lei que protege a propriedade de todos? Ora eu pergunto-vos se realmente é justa uma lei que ordene àquele que nada tem o respeito para com aquele que tudo possui. Quais são os elementos do pacto social? Não consistirá em cada um ceder um pouco da sua liberdade e das suas propriedades, de modo a assegurar e conseguir que uma e outra sejam conservadas?
(...)
um juramento deve ter iguais efeitos para todos os indivíduos que o pronunciam; é impossível que ele possa vincular aquele que nenhum interesse tem em vincular-se a ele, porque então deixaria de ser o pacto de um povo livre: passaria a ser a arma do forte contra o fraco, contra o qual este deveria incessantemente revoltar-se; ora é isto que acontece com o juramento que o pobre com tanta inconsideração pronuncia, sem ver que, mediante esse juramento, extorquido à sua boa fé, se compromete a fazer uma coisa que em seu favor ninguém poderia fazer.
"

Marquês de Sade, A Filosofia na Alcova

08 janeiro 2004

" Não vale a pena lutarmos, basta esperar, já que tudo acaba por passar na rua. No fundo só ela conta. E porque não? Espera por nós. É preciso descermos á rua, decidirmo-nos, não um, dois ou três dos nossos, mas todos. Ficamos lá, a fazer cerimónias e salamaleques, mas a coisa acaba por acontecer.
Em casa é que nada acontece de bom. Mal uma porta se fecha atrás de um homem, ele começa logo a deitar cheiro e tudo quanto traz consigo também. Faz-se logo ali ultrapassado de corpo e alma. Apodrece. Se cheiram mal, os homens, é muito bem feito. Deviámos prestar-lhes mais atenção! Devíamos faze-los sair, expulsar, expor. Os tipos que cheiram mal vão arrebicar-se para o quarto, e assim mesmo deitam cheiro.
Falando agora de famílias, eu cá sei de um farmacêutico da Avenida de Saint-Ouen que pôs um belo anúncio, um lindo reclamo na montra:"Para purgar uma família inteira, três francos a caixa"! Um sarilho! toda a gente arrota! Numa família é tudo em conjunto! Odeiam-se até deitar sangue, o verdadeiro lar é assim mas ninguém protesta porque é menos caro, ao cabo e ao resto, do que viver num hotel.
O hotel, falemos agora dele, é mais inquieto, não tem o ar pretensioso de um apartamento, sentimo-nos lá menos culpados. A raça humana nunca se mantém tranquila, e para nos aproximarmos do julgamento final, que há-de desenrolar-se na rua, o hotel é evidentemente onde estamos mais perto. Os anjos com trompetas podem lá chegar, e os primeiros vamos ser nós, os que sairmos do hotel."

Céline, Viagem Ao Fim Da Noite

04 janeiro 2004

" Já não parecia possível! Tornamo-nos rapidamente velhos, e de forma irremediável. Apercebemo-nos disso pelo jeito que apanhamos de amar a nossa própria desgraça, mesmo sem querer. É que a natureza tem mais força do que nós, aí está. Treina-nos num género, e depois já não podemos sair dele. Eu, por exemplo, tinha tomado o rumo da intranquilidade. A pouco e pouco vamos tomando o nosso papel e o nosso destino a sério, sem repararmos nisso, e depois quando caímos em nós é demasiado tarde para mudar. Fizemo-nos pessoas muito inquietas e, claro está, para sempre."


Céline, Viagem Ao Fim Da Noite