13 junho 2025

Turismo-imobiliário e Chega: o nexo a desarmar na economia

 A extrema-direita cresceu nas eleições legislativas de 18 de maio ao ponto de se tornar a segunda força no Parlamento. A mudança estrutural ocorrida na economia portuguesa, centrada na sobreprodução de turismo e imobiliário, com salários baixos e habitação a custos elevados, tem degradado as condições de vida dos trabalhadores. O estreitamento das possibilidades da política económica de inverter esta mudança estrutural deixa um vazio que a extrema-direita ocupa — e que à esquerda não é criticado com a clareza necessária.

por Nuno Teles - Le Monde diplomatique - junho 2025

Crescimento económico, desemprego historicamente baixo, inflação de 2%, ganhos reais dos salários. Lendo estes indicadores, não parece muito surpreendente a vitória e reforço da votação da Aliança Democrática nas últimas eleições. Afinal, depois de um ano de governo, para quê mudar? Todavia, a surpresa foi o segundo lugar da extrema-direita no Parlamento, que se soma ao reforço da restante direita neoliberal. Corrupção, imigração, ciganofobia e racismo, ubiquidade mediática de André Ventura, ressurgimento internacional da extrema-direita são algumas das explicações já oferecidas há um ano, quase sempre elaboradas de forma isolada. Na verdade, na nova geografia do voto no Chega, embora o voto tenha concentrações nas regiões periurbanas, a homogeneidade geográfica mostra que, provavelmente, o voto obedece a várias motivações sobrepostas. Aqui chegados, importa explicar estes resultados num quadro de mudança estrutural da economia portuguesa, com várias contradições conjunturais, refletidas na degradação da vida dos trabalhadores.

Depois de um período de estagnação, desindustrialização e aumento do desemprego, Portugal tem beneficiado, desde 2015, de crescimento económico e do emprego só interrompidos pela pandemia de Covid-19. Refletindo o seu carácter semiperiférico na economia internacional, o sucesso foi assente na procura internacional por turismo e nos fluxos de capitais externos. Estes, em busca de rendibilidade, num contexto de baixas taxas de juro, aproveitaram os preços baratos dos ativos nacionais pós-Troika. O peso do turismo no produto interno bruto (PIB) quase duplicou no período entre 2013 (5,4%) e 2023 (9,5%). O emprego disparou 68% no setor de alojamento, restauração e similares no mesmo período. O crescimento do turismo conduziu à recuperação do setor do imobiliário e da construção. O emprego no setor da construção aumentou 40% e nas atividades imobiliárias cresceu 120%. Os preços da habitação mais do que duplicaram de 2015 até 2024. Criou-se, assim, um nexo turismo-imobiliário que comanda a acumulação de capital em Portugal. O dinamismo destes sectores, dependentes do acesso à terra, conduziu à criação de vários tipos de rendas fundiárias. A competição entre capitais faz-se pela captura destas, seja através da sua ampliação direta, investindo (por exemplo, na hotelaria, casinos ou habitação), seja pela aposta especulativa futura, por via de alterações regulatórias ou do investimento público e privado num determinado território.

Esta dinâmica de acumulação de capital não beneficia apenas o capital estrangeiro. Velhos e novos milionários viram as suas fortunas crescer. Segundo o ranking da revista Forbes, algumas das famílias portuguesas mais ricas do país, investidas no imobiliário e turismo, viram o seu património crescer no período de 2019 a 2024: de 4173 para 5400 milhões de euros na família Amorim; de 1192 para 1770 milhões na família Alves Ribeiro; e de 681 para 1750 milhões na família Pestana. Paralelamente, novos capitalistas, também eles lucrando com o nexo turismo-imobiliário, tornaram-se os principais proprietários de meios de comunicação social, como Mário Ferreira, principal acionista da Media Capital (TVI, CNN Portugal, Rádio Comercial) ou Marco Galinha, principal acionista da Global Media Group (TSF, Diário de Notícias, Jornal de Notícias). Em torno destas fortunas foi também dinamizado um conjunto de atividades «profissionais», desde os escritórios de advocacia até à consultoria, com o surgimento de um novo estrato de «profissionais» qualificados e bem remunerados. A estes somam-se os proprietários de habitação, agora valorizada em determinadas localizações, que também beneficiam deste nexo.

Se o capital e seus serviçais se recompuseram e reforçaram depois da crise de 2011-2013, o mesmo não aconteceu com a generalidade dos trabalhadores. O emprego cresceu muito nos últimos dez anos, mas, sendo o nexo turismo-imobiliário assente nos baixos salários, os ganhos salariais estiveram quase exclusivamente associados à elevação, em termos reais, do salário mínimo. As sucessivas reformas laborais e consequente progressivo desmantelamento de sindicatos e negociação coletiva impediram um aumento generalizado dos salários ou o reequilíbrio de poder entre trabalhador e patrão, naquilo que são os horários e condições do processo de trabalho. Embora o rendimento bruto nominal do trabalho médio tenha crescido 14% entre 2020 e 2023, puxado pelos aumentos de salário mínimo, o rendimento médio real, descontado da inflação, ficou estagnado, resultando na crescente compressão salarial entre o mínimo e o médio.

Rendimentos dos trabalhadores e custo da habitação

Ainda assim, os salários, mesmo descontados da inflação, são cada vez mais uma medida insuficiente para medir a evolução do rendimento dos trabalhadores nos aspetos básicos da reprodução social do trabalho, como a alimentação, habitação ou saúde. No setor da alimentação e bebidas não alcoólicas, o aumento de preços foi de 13% em 2022 e 10% em 2023, bem acima da inflação de 7,8% e 4,3%, respetivamente, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE). Na habitação, que é principal custo das famílias, a prestação do crédito à habitação não aparece no índice de preços. A prestação média do crédito à habitação chegou a mais de 400 euros, em 2024, quase o dobro do mínimo histórico de 2020. A falta de investimento e a degradação na saúde faz com que, em 2021, os pagamentos (privados) diretos tenham sido de 29% do total da despesa de saúde no país, contra uma média na União Europeia de 18,9%.

Esta é, pois, uma crise social diferente da de 2011-2014, mas comum à restante Europa. Os trabalhadores sofrem uma crise na sua reprodução social, assente numa economia em que os setores mais dinâmicos dependem dos preços baixos oferecidos à procura e capital externos. Como Karl Marx afirmou na sua análise da renda fundiária absoluta, os setores produtivos de onde as rendas fundiárias são extraídas dependem necessariamente de menor composição orgânica do capital, ou seja, de mais trabalhadores do que a média da restante economia. A análise continua verdadeira. A dependência da abundância de trabalho deu origem à onda migratória de centenas de milhares de trabalhadores que afluíram a Portugal, não competindo diretamente com os trabalhadores residentes no mercado de trabalho, mas modificando a dinâmica demográfica de várias cidades e pressionando o acesso a serviços públicos extenuados por anos de falta de investimento.

Neste contexto, o crescimento da extrema-direita deixa de ser uma surpresa. Num quadro mediático hegemonizado pela direita, os problemas dos trabalhadores com salários estagnados, num quadro de inflação e de aumento da prestação da casa, não são atribuíveis à intervenção direta do Estado, ao contrário do que aconteceu durante os anos de intervenção da Troika. O mal-estar individual é apresentado como resultado inevitável do «mercado», as mais das vezes com origem internacional. Não é entendido como problema que possa realmente ser resolvido pela política pública, mais ou menos tecnocrática, como parte da esquerda foi argumentando durante a campanha.

Com alvos muito concretos, dos políticos corruptos aos imigrantes, mas soluções difusas, as mais das vezes neoliberais autoritárias, a extrema-direita ocupa o vazio deixado pelo estreitamento das possibilidades da política, sobretudo económica. Deixa também de ser surpresa o concomitante sucesso da outra direita neoliberal, assente, não na retórica de proteção «nacional», associada à extrema-direita, mas na responsabilização individual e meritocrática, alimentado pelas redes sociais. A exceção a este quadro talvez seja o Serviço Nacional de Saúde (SNS), onde é o subinvestimento, enquanto escolha governamental, a origem da degradação dos cuidados de saúde. No entanto, com milhões de portugueses a recorrerem a esquemas privados ou semiprivados (como a ADSE) no acesso à saúde, a discussão sobre o SNS arrisca-se a ser, cada vez mais, uma discussão que deixa de fora boa parte da população.

O sucesso da extrema-direita e da restante direita neoliberal não é unicamente atribuível à conjuntura (e estrutura) difícil para a esquerda. A despolitização do discurso em muita esquerda é um facto que vai para lá de qualquer discussão sobre o Tiktok ou entrevistas no Youtube. Numa economia política externamente sobredeterminada, grande parte da esquerda parece ter aceitado as regras de um jogo político e mediático, viciadas à partida, oscilando entre o discurso casuístico e tecnocrático das políticas públicas que procuram minorar os problemas estruturais da relação trabalho e capital, o genérico «resolver os problemas das pessoas» ou simplesmente prometendo que poupará aos cidadãos a maçada de eleições futuras. A oposição política foi circunscrita ao cenário parlamentar nos partidos de direita. Não alcança o patrão ou o senhorio, substituídos pelos abstratos «mega ricos» e «especuladores». Privilegia-se a redistribuição, via impostos e benefícios sociais e/ou fiscais, desistindo-se da reflexão e crítica ao modelo económico e da distribuição primária de rendimento, entre salário e lucro.

Corrupção, imigração, racismo: que discurso à esquerda?

Igualmente preocupante é a incapacidade de muita esquerda de articular um discurso sobre temas onde a extrema-direita prospera, seja a corrupção, a imigração ou o racismo. A corrupção e o sistema de justiça foram objeto de silêncio, talvez entendidos como meros casos de polícia ou, como no caso de Luís Montenegro, como falha de carácter. Porém, um diagnóstico do papel das rendas fundiárias nos lucros do imobiliário e turismo conduz inevitavelmente à raiz do problema presente. Ganhos extraordinários podem ser conseguidos com o tráfico de influências e a corrupção, na viciação da regulação pública nos usos de imóveis, das classificações territoriais às licenças de turismo, hotelaria ou de jogo. O combate eficaz à corrupção implica, pois, a destruição destas rendas, pela regulação e propriedade pública.


Se a corrupção não chegou a ser assunto à esquerda, com o aumento da imigração, dois tipos de discurso à esquerda emergiram, ambos adaptando diferentes discursos da direita. No primeiro, a questão é colocada em termos utilitaristas ou culturalistas, seja ao considerar a imigração como essencial à economia ou à sustentabilidade da segurança social, seja na ideia de que existem trabalhos fora do interesse dos portugueses. No segundo discurso, procura-se esvaziar a extrema-direita, embarcando nos seus termos, mas de forma moderada ou «codificada», com generalidades sobre regulação da imigração ou um respeito de valores europeus ou ocidentais, implicitamente superiores (no momento em que União Europeia patrocina um genocídio). Tenta-se, assim, copiar o discurso político, no mínimo estigmatizante, dos sociais-democratas dinamarqueses, dos trabalhistas britânicos ou do recém-criado BSW (Aliança Sahra Wagenknecht) alemão. De ambas as discussões ficam ausentes os problemas de um modelo económico dependente de imigração, onde o trabalho barato e abundante é condição simultânea do seu sucesso e de crise da reprodução social do trabalho, traduzida em pressão sobre serviços públicos e habitação. Ausente do debate político está também a responsabilização política do Norte Global num modelo económico e político que destrói a paz e o ambiente, conduzindo ao desespero de quem abandona família e amigos pela tentativa de uma vida melhor.

Uma análise de esquerda sobre imigração tem de colocar no seu centro a defesa do, vulnerável, trabalhador imigrante. Para isso, a questão não pode estar desligada de uma reflexão de esquerda sobre racismo, tão presente no discurso da extrema-direita. O antirracismo à esquerda é sobretudo proclamatório e performativo, baseado na experiência individual, ou, pior, negacionista (o racismo enquanto exceção). Partindo desta atitude liberal perante o racismo, este seria combatido pela educação e, eventualmente, pela lei. Ausentes, também, do debate estão as raízes históricas, as condições sociais e a presente economia política que promovem o racismo e a segregação racial dos trabalhadores, essenciais à permanência de uma mão-de-obra disciplinada no nexo de acumulação turismo-imobiliário. O trágico assassinato de Odair Moniz, enquanto reflexo do racismo estrutural que prolifera na economia política dos centros e periferias urbanas foi, salvo honrosas exceções, esquecido nesta campanha.

A esquerda não pode deixar a extrema-direita a falar sozinha, nem cair na armadilha de discutir nos termos definidos por esta. A construção de um discurso antifascista implica um diagnóstico cuidado da relação entre capital, nacional e internacional, e trabalho. Não por acaso, essa foi uma das marcas da estratégia política do antifascismo português antes do 25 de Abril. Nessa esteira, precisamos de alargar o debate político nas suas diferentes vertentes económicas, orçamental, monetário, industrial, de forma a responder, eficaz e sistemicamente, aos problemas do salário, das condições de trabalho, do endividamento, dos preços, dos serviços públicos. Hoje, tal resposta sistémica implica uma atitude antissistémica e socialista, desafiadora do capital nas suas contradições presentes, da crise de reprodução social à crise ambiental, passando pela ameaça armamentista. É neste campo que se faz o combate à extrema-direita, apontando, como tem sido feito neste jornal, o seu entrelaçamento com os interesses fundiários, corruptos, de exploração de mão-de-obra barata.

A alternativa é fácil de vislumbrar. Este modelo de crescimento económico, baseado no turismo e construção, especulativo e vulnerável aos apetites dos fluxos de capital internacional, no momento em que encontrar dificuldades à acumulação de capital, entrará em crise com estrondo. A sobreprodução no turismo e imobiliário será agravada pelo contágio à esfera financeira, que atualmente comanda o investimento nestes sectores, e por um exponencial aumento do desemprego, dada a sua natureza intensiva em trabalho. Num inevitável cenário de quebra de receitas públicas, um regresso da austeridade parece provável neste quadro europeu. Tudo o resto constante, estarão reunidas as condições para uma vitória eleitoral da extrema-direita.


17 janeiro 2025

Realismo Capitalista

Fisher destaca um sintoma social crucial para os tempos atuais, que difere do cinismo ou da apatia: a impotência reflexiva, que teria a estrutura de uma profecia autorrealizável. Na impotência reflexiva, sabemos que as coisas estão piorando, e “sabemos” que não podemos fazer nada a respeito, mas esse saber não é uma mera representação passiva de uma realidade objetiva. Na verdade, contribui ativamente para reforçá-la em uma espiral hipersticional implosiva, produzindo, em parte, o imobilismo que reproduz a condição. Esta experiência é estetizada em termos kafkianos, cada um em seu aprisionamento burocrático.

(...)

Por um lado, um Fisher cada vez mais pragmático e programático estava preocupado em pensar uma política que disputasse o centro do tabuleiro, o mainstream, que pudesse ter efeitos práticos institucionais e avançasse concretamente na direção de consolidar uma base de poder. Esse tipo particular de orientação, diz Fisher, não aposta todas as suas fichas numa transformação repentina e definitiva, e nem concede o terreno do que é “realista” ao inimigo. Trata-se de avaliar sobriamente os recursos que estão disponíveis para nós aqui e agora, e pensar sobre como podemos melhor usá-los e ampliá-los, para nos movermos – “talvez devagar, mas certamente com propósito” – de onde estamos para onde desejamos chegar.

(...)

É a combinação do utópico com o pragmático que tanto se faz necessária hoje: pragmatismo sem utopia leva à resignação rebaixada do neoliberalismo progressista, enquanto utopia sem pragmatismo nos deixa “na posição da bela alma: com as mãos limpas, mas inúteis”.


"Mark Fisher nos ajudou a pensar para além do realismo capitalista"


POR Victor Marques e Rodrigo Gonsalves

01 janeiro 2025

Hanukkah invites us to bring light into the world - JVP

Tragically, the Zionist movement chose to put its faith in human power and national territorial sovereignty, seeking to create a “Third Jewish Commonwealth” in historic Palestine. In so doing, it forged a wholly new Jewish identity: an internalization and inversion of European antisemitic themes of Jewish feebleness. This ideal prioritized physical strength and militarism, and was often exemplified by the revival of the Maccabees as Jewish heroes, forsaking the miracle of the oil for a focus on violent militarism. 

This reinterpretation has troubling implications today, as it echoes in the ongoing violence in Gaza, where militarism perpetuates suffering and destruction, often using ancient symbols of Jewish tradition as forms of psychological violence. The enduring message of Hanukkah — resilience through faith and light — has been overshadowed by this glorification of force.

 One of the most striking examples of this distortion is the sight of menorahs being lit amidst the rubble of Gaza by IDF soldiers. These acts, extensions of the militarization of Hanukkah through Zionism, desecrate the profound message of the holiday. The Hanukkiah, a beacon of hope and divine presence, has been reduced to a tool of domination. Such actions betray the ethical core of Jewish tradition, which calls for the pursuit of justice and collective human dignity


Jews Voice for Peace

1.01.2025