1. O circo
mediático que o autor critica e que faz derivar até ao presente, com as fake news e a produção de personas como
Trump, serve a este texto de base de alimento, não deixando Araújo de chafurdar
nalguns pormenores que escolhe em detrimento de outros para viver, ele também,
no que chama circo. Um alimento feito assim farto e para todos.
2. Não somos todos seviciados pela arquitetura de
Tomás Taveira como faz decorrer Araújo, presumindo que o seu sentido de gosto
reflete uma mundividência do “bom senso”, tique assaz costumeiro a quem
pretende ou aceita narrativas hegemónicas e logo hierárquicas e de controlo,
estilo “west is the best”. A
arquitetura tem aqui, em vários aspectos, um papel importante. Nos espaços onde
é discutida à produção e usufruto dentro do quadro do capitalismo tardio, da
sua intensa financeirização nas últimas décadas e, na propensão a tudo abarcar,
da gestão do território, urbanização, habitação, aos direitos, como o direito à
cidade e as suas condições de habitabilidade e convivialidade.
“Num
primeiro plano, a Arquitectura é a construção de um cenário onde o jogo
cultural se desenrola, pois, em determinado sentido enquadra, fixa e torna
significativa a vida e as relações humanas. Acresce que esse sentido depende
sempre de um sistema de valores “culturais”. Sem Arquitectura certamente poriamos
em causa a nossa identidade como protagonistas de uma ficção a que chamamos
Mundo. Aliás, a Cultura faz isso mesmo: inventa o mundo como cenário. E ao
inventá-lo dita os termos em que estamos aptos para lidar com ele. É
compreensível, pois, que ofereçamos sempre resistência a qualquer alteração que
ponha em causa a nossa identidade”, (Lucinda Fonseca Correia, O património da memória e do esquecimento,
JA, Jornal Arquitectos, 2017)
3. Uma certa direita ressabiada com o processo
revolucionário pós 25 abril, do apoiante sionista Moedas, elevando os
calcanhares no púlpito da Câmara para que o ouvissem dizer que ia preparar as
celebrações do 25 de novembro pretendendo assim, em jogos de secretaria, fazer
equivaler a importância das duas datas, até a Araújos
&quejandos.
“Com
efeito, e por muito que nos custe a crê-lo, o presente extremismo político e as
suas pulsões totalitárias são herdeiros directos da atmosfera feérica dos anos
80 e da sua divisa, mais tarde levada ao limite, nothing is true and everything is possible. Primeiro, destruíram-se
as noções de verdade, de objectividade, de racionalidade e, a seguir, as
distinções éticas entre o bem e o mal, o certo e o errado. E depois surgiu
Trump” AA
Este
ressabiamento e querer ajustar contas com os processos revolucionários que
alteraram profundamente o país, está no preconceito de classe que creio existir
nos olhos com que António Araújo vê algumas das personalidades sobre as quais
decide fazer a Prova de Vida. No texto sobre Tomás Taveira torna-se mais
evidente porque relaciona as frustrações com as derivas dos anos 80,
afinal a década em que os Zé-ninguéns começaram a chegar em grande número às
universidades, à administração pública, e de repente uma gente sem pedigree
(ver a preocupação em apurar a filogénese da personagem Castelo Branco em
crónica anterior) está em todo o lado. Esta gente, para além de não saber estar
à mesa, ainda vai dar aulas na faculdade, manda bocas ao presidente da
república, mais um pouco e estão no foyer
do São Carlos a largar gases sonoros junto à condessa de Vila Praia de
Âncora&Caribe. O pós-modernismo pop foi longe demais, levou-nos ao
niilismo, da arquitetura de Taveira ao Lux e logo depois das questões de género
ao trumpismo. Tudo uma grande desgraça que não só explica o atraso económico
como a feiura das nossas cidades antes certas e apolíneas.
“todos os
arrivistas odeiam a memória, até porque ela lhes vem lembrar o lugar de onde
vieram e as humilhações sofridas ao longo dos anos” AA
4. Apesar das vítimas, sem sabermos exatamente de
que forma e moldes, António Araújo não estranha o filme de Taveira estar
disponível ao público. O único julgamento e acusação penal que resultou sobre o
escândalo foi o da divulgação sem conhecimento e consentimento das mulheres
envolvidas. Apesar desta condenação aí está a divulgação atual sem que a
Justiça, apesar de uma ação em tribunal a condenar esse facto, nada faça para
impedir o crime, pelo menos aquele ao que se chegou na altura. Hoje talvez
esperássemos ou exigíssemos, enquanto sociedade, que a Faculdade de Arquitetura
onde continuou a dar aulas assumisse uma posição diferente. O
arquiteto viria a ter aí um processo discipular por outros motivos que não o
envolvimento com alunas relacionado com a avaliação das mesmas.
Perante
esta suma indiferença, AA ainda se compara às vítimas do filme pela forma como
a arquitetura de Taveira também o sevicia e abusa, uma analogia que prefigura o
lugar e o respeito que Araújo dedica a quem foi a vítima do crime e sobre o
qual se permite realizar toda uma série de juízos.
5.
O outro maior problema do texto de
António Araújo é desqualificar a obra do arquiteto através da pessoa (como faz
o romancista francês de “O Brutalista”). Seria o mesmo que desqualificarmos
António Araújo enquanto historiador e investigador por ter sido
apoiante de Cavaco Silva ou por manifestar estranhas fixações com a palavra
sodomia.
6. Provavelmente António Araújo não deve andar de
metro e por isso desconhece a estação das Olaias, que, numa dimensão faraónica
nas plataformas, tem a surpreendente característica de não deixar os corpos
humanos que a habitam numa posição minúscula, antes jogando com as entradas de
luz e as cores que atravessam nos vitrais ou transparências para o acesso aos
pisos superiores ou para o exterior. Este jogo, alimentado pela distribuição de
cor nos pavimentos, nas colunas, conseguindo ainda abrir espaço e dialogar com
as muitas obras de arte de outros artistas presentes, faz desta estação um
lugar de explosão de alegria e acolhimento que não encontram paralelo noutras
estações do metropolitano, onde também arquitetos e artistas brincaram com as
cores e o espaço. A estação de Chelas na mesma linha, por exemplo, com jogos de
cores em volumes e reentrâncias muito interessantes, não consegue apesar disso
libertar-se da sensação de um espaço escuro e fechado.
Araújo
refere ainda como a arquitetura de Taveira é indiferente ao espaço ou
pré-existências onde se implanta, também não deve conhecer Chelas, no bairro do
Condado, que um punhado de arquitetos foi chamado a projetar. Os vários
edifícios de Taveira, os únicos que não alpenduram torres altas no topo de
colinas, espécie de pesadelo de marca das nossas periferias mais isoladas, numa
solução de encher muito e desqualificar ao mesmo tempo espaço e pessoas. Aqui
Taveira não construiu em altura, como nas Olaias, porta de entrada para o Vale
de Chelas, ou noutros lugares, e mais ainda, desenha os seus edifícios com os
mesmos pormenores, decorativos e cromáticos que coloca noutros projetos para
habitação de classes altas ou para edifícios de serviços. Em Chelas adequa a
paisagem, o topo de uma colina, com a qualidade construtiva. Outros exemplos de
integração, mas em malha urbana consolidada, como na Av. D. João XXI, em frente
à sede da CGD, onde num vértice da fachada desenha uma chaminé em homenagem à
memória das altas chaminés da gigantesca Fábrica Lusitânia, que ocupava o lugar
hoje ocupado em parte pelo bunker monolítico
da Culturgest. Caído ali como podendo ter caído noutro lugar do universo, num deserto ou no fim de um beco atrás da
principal praça de uma vila qualquer. Ainda em integração ver nas traseiras
deste edifício da João XXI, outro projeto de habitação de Tomás Taveira (Av.
Óscar Monteiro Torres) que não está desintegrado, decorridas já algumas
décadas, com os desenhos de fachadas ao longo do mesmo arruamento, edifícios do
início do século passado, principalmente junto ao Campo Pequeno e das décadas
seguintes a chegar à Av. Roma.
Como para a maioria dos arquitetos há obras excelentes, outras que eram excelentes mas os projetos em torno de urbanização ou novas construções deixaram desadequadas ou com ar inacabado (o topo das Olaias por ex. com a construção do Hotel e com a falta de articulação com os bairros sociais - Portugal Novo), outras más ou de que gostamos menos ou que passámos a integrar como óleo de fígado de bacalhau (Torres das Amoreiras).
As classes sociais
raramente convergem, mas se puderem fazer alianças temporárias no projeto e
construção de uma arquitetura comunitária de múltiplos valores, será preciso
que todos tenham uma consciência do paradoxo e alguma ironia e agudeza de
espírito.
Josina
Almeida, junho 2024
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