Artigo de Cipriano Justo na revista da Ordem dos Médicos, sobre o recente livro da Almedina: 40 anos de Abril na Saúde
Lançado em Junho de 2014 pela editora Almedina,
40 anos de Abril na Saúde reúne um conjunto de contribuições de vários profissionais da saúde antecedidas de uma Introdução subscrita por António Correia de Campos (ACC) e Jorge Simões (JS). Ao longo de 45 páginas ACC e JS propõem-se traçar o percurso do que tem sido o sistema de saúde português desde a instauração da democracia, principalmente os desenvolvimentos que o serviço nacional de saúde foi sofrendo desde a sua criação, em 1979. Assinalar o acontecimento e fixar para a posteridade os principais marcos deste serviço público é um serviço que deve ser sinalizado, uma vez que não estão disponíveis, para quem se queira documentar, muitas obras que abordem, mesmo sinteticamente, a política de saúde deste período da história portuguesa.
Ao longo de onze entradas, ACC e JS procuram dar conta dos factos mais significativos que sucessivamente, e considerando os ciclos político-partidários, foram marcando o sistema público de saúde. Porém, o trabalho destes autores, mau grado o suporte empírico com que procuram fundamentar os seus pontos de vista - embora não se perceba como é que, com os valores mais baixos de esperança de vida saudável aos 65 anos na UE15, só melhores do que os valores da Alemanha e Itália, nos homens[i], se possa afirmar que “quem atingir a meta dos 65 anos tem uma elevadíssima probabilidade de alcançar os 83 anos, com boa saúde”- dificilmente consegue ultrapassar o formato de um inventário das alterações que o sistema de saúde foi sofrendo desde os tempos da ditadura. Contudo, como a produção de um inventário deve obedecer a critérios de selecção dos materiais, o que acaba por ser particularmente significativo são as omissões que ao longo das 45 páginas vão sendo detectadas, configurando uma exclusão do material histórico que se considerava irrelevante para o fim em vista, e considerando o propósito do empreendimento.
Centremos então a atenção sobre os acontecimentos omitidos, sem os quais sessenta e oito anos do período abarcado pelo trabalho fica severamente truncado. Primeira omissão. No período 1946-1971 são assinaladas três medidas – a criação da Federação das Caixas de Previdência, em 1946, do Ministério da Saúde e Assistência, em 1958, e a reforma do sistema de saúde, em 1971, mais conhecida por Reforma Gonçalves Ferreira, então Secretário de Estado da Saúde e Assistência do ministro Baltasar Rebelo de Sousa. Ficou omitido um acontecimento chave deste período e que explica os desenvolvimentos futuros do sistema de saúde português, tanto antes como depois da revolução de 25 de Abril, o Relatório das Carreiras Médicas[ii], divulgado em 1961, e cujos autores foram, entre outros, Albino Aroso, António Galhordas, António Vasconcelos Marques, Arménio Ferreira, Carlos Alves Pereira, Jaime Celestino da Costa, João Cid dos Santos, João Pedro Miller Guerra, Maria Idália Correia, Norberto Teixeira dos Santos, Nuno Castelo Branco[iii]. Ao contrário do que o título pode fazer supor, este Relatório extravasa largamente a perspetiva corporativa médica, projectando-se numa visão integrada de necessidades em saúde, serviços e prestadores, sintetizada na seguinte conclusão: “O Serviço de Saúde deve garantir a qualquer indivíduo, no momento necessário, os cuidados de que precisa” considerando para isso a necessidade de “unidade de concepção, de direcção e de execução da política sanitária nacional”. É legítimo, por isso, considerar que tanto a designada Reforma Gonçalves Ferreira, de 1971, como a Lei do SNS, de 1979, são tributárias e corolário deste documento fundador do serviço público de saúde português.
A segunda omissão verifica-se com o mais importantes instrumentos de gestão das carreiras profissionais dos médicos, o decreto-lei 73/90[iv], aprovado em conselho de ministros ainda durante o mandato da ministra Leonor Beleza, mais precisamente em 28 de dezembro de 1989, mas só publicado em 6 de março de 1990. Nele se reconhece que “O presente diploma reformula o regime legal das carreiras médicas dos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, enquadrando-se no objectivo prioritário do Governo de modernização da Administração Pública, através de um projecto de desenvolvimento e valorização dos seus profissionais, com vista à melhoria da rentabilidade e qualidade dos serviços a prestar”. Igualmente relevante é o facto de tendo resultado de um intenso processo negocial entre os sindicatos médicos e a tutela, o diploma acolher, para além dos aspectos remuneratórios, disposições técnico-funcionais que se podem resumir em dois tipos de exigências, as quais passam a constituir um referente de qualidade do exercício profissional, “(i) legitimar, garantir e organizar o exercício das actividades médicas no Serviço Nacional de Saúde, com base nas adequadas habilitações profissionais e a sua evolução, em termos de formação permanente e a prática funcional, (ii) estruturar e desenvolver as carreiras médicas por categorias hierarquizadas, às quais correspondem funções da mesma natureza e que pressupõem a posse de graus como títulos de habilitação profissional”. Este diploma acaba por ter repercussões sobre a organização das outras profissões da saúde porque será ele que se constituirá como modelo para as restantes carreiras do Serviço Nacional de Saúde.
A terceira omissão diz respeito ao programa da saúde da mulher e da criança. Elaborado pela Comissão Nacional de Saúde Materna e Infantil, nomeada pelo despacho 8/89[v], da ministra Leonor Beleza, e constituída por António Baptista Pereira, António Torrado da Silva, João Dória Nóbrega, José Manuel Palminha, Luís Pereira leite, Maria da Purificação Araújo, Octávio Cunha e Vicente Souto, o programa começou a ser aplicado em Junho de 1989, nele se reconhecendo a necessidade de “uma rigorosa articulação e integração funcional das actividades prosseguidas nos diferentes níveis de cuidados e seus componentes”. Ainda nesta área da prestação de cuidados cabe assinalar a manutenção do programa através do despacho de 6/7/1994[vi], já no mandato do ministro Paulo Mendo, embora com alterações na composição da comissão, devendo assinalar-se a entrada de Agostinho Moleiro. Se Portugal se pode apresentar com indicadores de saúde da mulher e da criança equiparáveis aos países mais desenvolvidos do espaço europeu deve-se muito à acção desta comissão que soube dinamizar e articular um vasto e complexo conjunto de recursos dispersos, organizando-os e colocando-os a funcionar no sentido certo. Considerado como um dos exemplos com melhores resultados do SNS, este programa desenvolveu um dos instrumentos mais inovadores da altura, as unidades coordenadoras funcionais, promovendo a horizontalização entre os serviços de saúde com substanciais ganhos na cobertura, no acesso e na continuidade dos cuidados.
A quarta omissão diz respeito ao pensamento estratégico desenvolvido durante o mandato da ministra Maria de Belém Roseira, numa conjuntura particularmente adversa para o sector saúde que, além de um longo período de estagnação, fruto da inacção do ministro Arlindo Carvalho, herdava um histórico de tensões, desconfianças e conflitualidades com os profissionais da saúde. Além disso, o partido socialista passara dez anos na oposição e com 43,8% dos votos nas eleições de 1 de outubro de 1995[vii], chegava ao governo sem maioria absoluta. Havia que encontrar um conjunto de soluções que dessem resposta a défices organizativos e de gestão dos serviços públicos de saúde, ganhar os profissionais, académicos e outros actores sociais e políticos para essas medidas, e colocar na agenda política a necessidade de se investir na evolução do SNS. Ao contrário do que era tradicional na administração pública portuguesa, as medidas lançadas, todas elas, tiveram um período de estudo, maturação, divulgação, discussão pública, consensualização e aprovação, como antes não tinha acontecido. E muitas das medidas que posteriormente, e com outros governantes, vieram a ser aplicadas são devedoras desse trabalho de quatro anos. Alguns exemplos: a contratualização, o programa acesso (de que o PERLE do ministro Paulo Mendo foi pioneiro), as USF, herdeiras dos centros de saúde de terceira geração, o regime remuneratório das USF modelo B, herdeiro do regime remuneratório experimental, as ULS, que enquanto modelo experimental ensaiado em Matosinhos, acabaram por se substituir aos sistemas locais de saúde.
A quinta omissão envolve a acção mais sombria que uma organização sindical desenvolveu até à data e que ficou para sempre conhecida como a greve self-service[viii], iniciada em setembro de 1998 e desencadeada a propósito da política de remuneração dos médicos mas que rapidamente assumiu contornos de confronto político com a tutela, visando criar as condições para não ser reconduzida no cargo, como veio a acontecer na sequências das eleições de Outubro de 1999. Ao contrário, a FNAM declarava, em agosto de 1998, na sequência de um aturado processo negocial, que “até hoje, nunca tinha havido uma revalorização salarial suplementar com uma amplitude tão grande», comentou Mário Jorge, dirigente da Federação Nacional dos Médicos, a propósito do acordo assinado na semana passada com o Ministério da Saúde e que prevê aumentos globais de 10,2 por cento, a concretizar gradualmente nos anos de 1999 e 2000. O acordo abrange 22 mil médicos, disse Mário Jorge à Agência Lusa, notando que, para além desta revalorização salarial, os médicos terão os aumentos salariais anuais da Função Pública.[ix].
A sexta omissão, verificada durante a vigência do XVII governo, de que António Correia de Campos foi titular da pasta da saúde (2005-2008), centra-se na política de encerramento intempestivo de serviços públicos de saúde numa lógica de desertificação da prestação de cuidados de proximidade a vastas camadas da população, sobretudo das zonas rurais. A sétima omissão, associada a estas medidas, foi a reacção de milhares de portugueses que saíram à rua, de norte a sul do país, para se opor à sua política, tendo, inclusivamente, merecido de António Arnaut uma apreciação particularmente crítica – “disse-lhe muitas vezes que, para fazer o que estava a fazer, tinha que sair do PS, porque era uma negação dos princípios socialistas”[x]. A dimensão que essas manifestações adquiriram acabou por obrigar o ministro a resignar em 29 de janeiro de 2008, reconhecendo que a sua substituição era “um elemento indispensável para restaurar a relação de confiança» entre cidadãos e o Serviço Nacional de Saúde”[xi].
A oitava omissão é a Lei 41/2007 - Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos utentes do Serviço Nacional de Saúde[xii] -, apresentada pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda e aprovada por unanimidade pela Assembleia da República. Esta Carta veio responder a um longo processo de exigência dos portugueses de os serviços públicos de saúde garantirem o acesso em tempo oportuno aos cuidados de saúde. Importa relembrar o objectivo desta decisão da Assembleia da República: “1 - A Carta dos Direitos de Acesso visa garantir a prestação dos cuidados de saúde pelo Serviço Nacional de Saúde e pelas entidades convencionadas em tempo considerado clinicamente aceitável para a condição de saúde de cada utente, nos termos da presente lei. 2 — A Carta dos Direitos de Acesso define: a) Os tempos máximos de resposta garantidos; b) O direito dos utentes à informação sobre esses tempos.
A nona omissão diz respeito à Portaria 1529/2008[xiii] que fixa os tempos máximos de resposta garantidos (TMRG) para o acesso a cuidados de saúde para os vários tipos de prestações sem carácter de urgência, publicada durante o mandato da ministra Ana Jorge. Estando em causa um dos aspectos mais críticos da prestação de cuidados dos sistemas públicos de saúde, este instrumento de gestão veio tornar particularmente mais exigente e escrutinável o planeamento e a gestão clínica dos serviços.
A décima omissão cabe ao papel das associações profissionais, dos movimentos de utentes da saúde e da população globalmente considerada. Nestes quarenta anos de regime democrático a sua intervenção e o seu contributo são inseparáveis da história do SNS. Sem a sua mobilização e capacidade de reivindicação o patamar de qualidade que os serviços públicos de saúde atingiram não teria sido seguramente conseguidos.
O que talvez seja mais chocante naquelas 45 páginas é a ausência de um critério de análise. Académicos reconhecidos, com um extenso currículo profissional, exigia-se de ambos que ao lançarem-se sobre a história do sistema público de saúde, mesmo resumidamente, o ponto de vista desse empreendimento não se assemelhasse frequentemente a uma paisagem lunar. Quem o estudar, não se dá conta dos avanços e dos recuos, das contradições entre os interesses em presença, das lutas sindicais e populares, dos combates políticos e partidários, enfim de como a vida esteve diariamente presente nessa enorme empreendimento da democracia portuguesa que é o SNS. Quem o ler fica na ignorância de que o SNS não deveu o seu êxito aos caprichos da sorte mas a um tenaz combate que combinou visão política, competência técnica e dedicação dos profissionais da saúde, apoio popular e demonstração de resultados. Considerando a autossuficiência de terem atribuído ao mandato de ACC, no XVII governo, o subtítulo de Reforma do SNS, fica-se com a incómoda sensação de que o empreendimento foi sobretudo um pretexto para afirmar a excelência do mandato de ACC durante os seus trinta e quatro meses como ministro da saúde no XVII governo.
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