26 setembro 2012

Sobre a história não-problematizadora de Rui Ramos

"Rui Ramos não é um especialista do Estado Novo e usou exactamente o método tão elogiado por Barreto, ou seja, a narrativa não teorizadora. Mas, a problematização é o que de mais aliciante tem a História e que provoca no leitor medianamente culto (o outro lê sempre qualquer coisa, até as Histórias rocambolescas da História de Portugal, pensando que está a ler um livro de História) o gosto pela reflexão crítica, o que — aí concordarei com Rui Ramos, se entender o conceito como eu — o leva a ler a História não “a preto e branco”, mas com todas as cores, ou, por outras palavras, de forma poliédrica.


Ora, se lermos as páginas sobre o Estado Novo da História de Portugal (eu li-as na edição principal e não nesta edição em volumes), não nos apercebemos que Salazar se formou num denso complexo de realidades e de concepções do Estado. Sobressaíam então, para além das teses e práticas republicanas mais radicais que geravam naturais reacções, posições republicanas conservadoras e nacionalistas, o corporativismo católico, com as suas teses sociológicas e pedagógicas, ideias integralistas que jamais apontavam para a noção de uma “monarquia absoluta” (como diz Ramos e que era, ao invés, uma ideia que os integralistas combatiam), ideologias fascistas que surgiram em Portugal logo no contexto da “marcha sobre Roma” e, mais tardiamente, apaixonadas afirmações nacionais-sindicalistas, que não se afastavam mesmo do nazismo nascente. Seguindo a narrativa de Rui Ramos, tudo surge de forma natural, formando-se um Estado onde a regra era “viver habitualmente” (ideologia captada em Salazar, em 1938, por Henri Massis, mas que já se encontra na entrevista de António Ferro), no sentido de uma “nova democracia”, onde a palavra “totalitarismo” era proibida, onde se verificava uma “ditadura moderada” (mais moderada do que na própria República) com uma repressão dirigida (esquecendo as vicissitudes de toda a oposição, fosse ela qual fosse), onde havia uma “pluralidade cultural” (como se tendências de oposição pudessem ser integradas na concepção do Estado Novo e não fossem contra ele e alvo da sua repressão)… Mais ainda: onde havia uma concepção de “assimilação” em relação aos naturais das colónias (só tardiamente notória), onde se deu uma guerra colonial (que conheci, na Guiné, no final dos anos sessenta) em que os movimentos de independência acabaram por ter pouco significado social e até militar, onde as estatísticas provam o desenvolvimento de Portugal (que pode ser um facto em determinadas áreas e conjunturas. (...)"

Luis Reis Torgal, jornal Público, 20.09.12 publicado no Brumas

22 setembro 2012

Manuel de Freitas, 2010

para o Rui Miguel Ribeiro


Uma cerveja, uma esplanada, pombas
rondando os magros arbustos
- uma espécie de serenidade, intocável.
Penso como seria diferente este preciso momento
se me tivessem internado durante um mês,
à mercê de exames e de uma firme promessa de morte.

Penso que nunca tive um melanoma, uma cirrose,
uma hérnia no estômago, essas coisas
por que passaram alguns amigos meus.
E lembro-me de uns versos de Emily Dickinson
muito parecidos com a luz forte de Lisboa.

Penso que tenho, afinal,
um inferno pequeno
mas verdadeiro
por ser, como o vosso, mortal.

                       ............

I think how this very moment would be different
had I been admitted to hospital for a month,
at the mercy of tests and a firm promise of death.

I think how I’ve never had a melanoma, cirrhosis,
a stomach hernia, those things
that friends of mine have endured.
And some lines by Emily Dickinson come to mind
very similar to this strong light of Lisbon.
I think how after all I have
a real hell,
though small,
for, like yours, it's deadly.

20 setembro 2012

Pussy Riot: a meta-obra de arte

"A verdade é que as Pussy Riot não são aquilo que nos habituámos a designar como “uma banda”: integrando cerca de 10 performers e 15 elementos responsáveis pela logística técnica (incluindo filmagem, montagem e distribuição de vídeos via-Internet), são elas próprias uma espécie de “braço armado punk” do colectivo radical de "street-artists", Voïna (“Guerra”), a quem, em Agosto do ano passado, o "graffiter" britânico, Banksy, dedicou um episódio do programa “The Antics Road Show”, no Channel 4: “A Rússia. Terra de arquitectura grandiosa, excelente literatura e corrupção policial endémica”, narrava a voz-off enquanto as imagens mostravam as “performances artísticas extremas” dos últimos cinco anos destinadas a provar que “a polícia não é imbatível” e que incluíram a pichagem nocturna de um falo gigante numa ponte levadiça de São Petersburgo que, quando erguida, apontava para o edifício-sede do FSB (ex-KGB) ou a "Fuck for the heir Puppy Bear!", “fuck action” pública de grupo, levada a cabo, em Fevereiro de 2008, no Museu de Biologia de Moscovo – na sala “Metabolismo e energia dos organismos” – em protesto contra a passagem de testemunho de Putin a Medvedev (“medvedev”, em russo, significa “urso”), nas muito contestadas eleições desse ano. Ler o texto completo em Provas de Contacto

17 setembro 2012

"Uma hora antes já lá havia muita gente: falando, distribuindo propaganda, marcando presença, fazendo cartazes. Vi o Bruno Dias e disse-lhe que estava muito contente por ele ter ido. A praça estava ser pequena e assim a manifestação arrancou 20 minutos antes do tempo. No Movimento Sem emprego estávamos um pouco às aranhas pois ainda não tinha chegado a faixa, não tínhamos megafones... mas tínhamos o mais importante: gente disposta a tudo. Onde nos colocamos? A resposta foi óbvia. Junto aos que connosco marcharam na manifestação por nós promovida a 30 de Junho: entre o 15-O, que ia à frente, e o MAS, com a Rubra por trás. Começámos a andar, mas a faixa não chegava. Dois quarteirões mais à frente, chega uma mochila que se abre rapidamente. Já tínhamos faixa. Mas não tínhamos megafones. Porra! Um movimento sem megafone não é movimento. Continue-se com o que temos e use-se o que temos. Inicialmente pensámos colocar-nos ao lado do 15-O, porque eles pelo menos tinham megafones. Mas entretanto, melhor damos visibilidade à nossa faixa, deixemos que os de frente se afastem um pouco: "Espera! Pára! Estica!". Por vezes, vale mais usar bem o pouco que se tem do que confiar nas ferramentas tradicionais. As pessoas começaram a filmar-nos e a tirar-nos fotografias. Vinham ter connosco para nos pedirem folhetos, que acabaram num instante. Começámos a ver que em vez de filmarem e fotografarem o 15-O e o MAS, procuravam-nos a nós. No Saldanha, na estátua, quem ia à frente, seguiu pela esquerda. Como pretendíamos ficar ao lado do 15-O, fomos pela direita... e vimos que não havia ninguém à nossa frente. Do nosso lado, tínhamos a Av. da República completamente vazia. Olhámos para trás... e vemos que o povo atrás de nós nos segue. Seguimos em frente, pois éramos, do nosso lado, o topo da manifestação. Assim seguimos até ao Campo Pequeno. Virámos e fomos para a Praça de Espanha. Fomos andando até podermos e parámos. Ouvimos o orador final a apelar a que se formassem grupos de pessoas a nível local para lutar contra a austeridade. Ficámos felizes porque no dia anterior tínhamos apelado a que se formassem comités locais. Tentámos pedir a palavra mas foi-nos dito que só os organizadores é que poderiam falar, porque assim tinham decidido os organizadores. Nada mais democrático! Terminaram os discursos, continuaram com música por alguns minutos, e a organização deu por terminada a sessão. No que se tinha falado no Facebook e noutros meios, havia a sugestão de após a manifestação rumar ao Parlamento. O MAS, usando megafones, apelou que assim fosse e partiu... sem ninguém atrás. Alguém usou o cartaz da JSD "Todos temos que fazer a nossa parte" já transformado em "Todos temos que fazer a nossa arte# para escrever "Todos a S.Bento!!!". Demos uma volta para ouvir o que diziam as pessoas. E deu-se um momento mágico, algo que, pessoalmente só tinha lido sobre revoluções em outras paragens. Ouvia-se o Povo dizer "Estamos aqui meio milhão e não fazemos nada com isto? Então e agora vamos para casa? Que estupidez, agora vamo-nos embora?". Verificava-se que a massa estava mais radical que os organizadores. Rapidamente desfraldámos a nossa faixa e começámos a andar com palavras de ordem... e o Povo veio atrás de nós! Começámos a cantar Grândola e mais gente nos juntou. Víamos os que estavam parados à nossa frente começar a andar e a cantar! Descendo a António Augusto Aguiar, ainda haviam carros a circular, observa-se que quem vai nos carros toma uma de duas atitudes: ou buzina connosco as palavras de ordem com os punhos levantados, ou então fecham os vidros e estacionam. Curiosamente, os carros de alta cilindrada eram os mais cautelosos. Davam a sensação de estar com algum receio. Mais abaixo, um polícia puxa um jovem sem razão aparente para dentro de um pátio. Dezenas de pessoas correm furiosas atrás do polícia que desapareceu. O jovem não sei que aconteceu com ele, se foi preso ou se continuou na manifestação. Pouco antes da Fontes Pereira de Melo, onde vendem lamborghinis, o vidro foi estilhaçado. A polícia ia fazendo o que podia para parar o trânsito. Devo dizer que ao contrário da manifestação entre o Saldanha e a Praça de Espanha, em que conhecíamos muitas das pessoas que iam à nossa frente e ao nosso lado, esta ao fim da tarde era feita a passos largos e rápidos. As pessoas que iam connosco eram outras. Gente com a terceira idade, homens de 50 anos, jovens que nunca tínhamos visto em nenhum lugar. E o que mais chamava a atenção era a pressa que tinham em chegar a S.Bento. Espontaneamente, saiam palavras de ordem, que agora também se intensificavam contra o PS. Na Fundação Mário Soares, via-se as pessoas parar, como que hesitando se era para partir ou não. Aquilo chamou-me a atenção. Depois de por lá passar voltei atrás e percebi que não o sentimento não era só das pessoas que por lá tinham passado quando eu passei". Em S.Bento, era notório que a polícia estava bastante comedida. Era visível que eram muito poucos. O Largo já estava cheio até à Calçada da Estrela e a Rua de São Bento estava cheia até perder de vista. Manifestantes começaram a pegar nas grades que estavam no início da escadaria. E os polícias em vez de começar a cacetada como era de esperar, simplesmente puxaram para si as grades e levaram-nas para cima. Alguém desenterrou um dos postes com um sinal de trânsito e foi contra os polícias que simplesmente pegaram no sinal e o levaram para cima. Pessoas começaram a mandar garrafas para os polícias e os polícias nada fizeram. Enquanto isso, os manifestantes apelavam insistentemente a que os polícias se pusessem do lado certo. Não aconteceu nada. O Parlamento não foi invadido. Ou aconteceu tudo. O Povo sem dúvida mostrou-se mais radicalizado do que as lideranças. A julgar pelo ânimo dos manifestantes, o PS corre um sério risco de seguir o caminho do PASOK. Para isso, basta que continue a afirmar que as medidas de austeridade são necessárias, numa atitude pseudo-patriota e em vez de defender o Povo continue a defender o Capital. Resumindo, ontem as coisas só não mudaram de rumo porque o Povo não quis. Viu-se que os partidos estão noutro comprimento de onda, completamente afastados dos sentimentos de quem está a ser trucidado. Alcides Santos

03 setembro 2012

Orçamento Participativo em Lisboa

Em fase de preparação da quinta edição do Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa, e desconhecendo o balanço político feito pela autarquia das duas primeiras edições, cabe numa primeira e rápida análise às propostas apresentadas, tanto este como em anos anteriores, alguma inquietação. Se propostas como "Retirar os ares condicionados das fachadas da baixa-pombalina" ou "Construir um acesso entre a Av. Mouzinho de Albuquerque e o Alto de S.João", "Contruir parques-infantis aqui e ali", "Campos de jogos", "Flores nos canteiros da cidade", "Arranjos urbanísticos daquele passeio, daquela praça", se este tipo de propostas, que são a grande maioria, se enquadram nas tarefas normais de orçamento ordinário da Câmara, se algumas delas são apresentadas pelas juntas de freguesia, se este orçamento é estilo o QREN -tudo cabe aqui, faz sentido pensar que um milhão de euros do orçamento da câmara de Lisboa é colocado ao serviço de um debate público em torno da cidade para além do que já existe (devia/podia) em torno de um programa eleitoral e do cumprimento e aprovação das contas?
Quando surgem propostas como a criaçao de um"Centro Intercultural da Língua Portuguesa", ou "Barbearias de Lisboa", elas parecem aproximar-se mais daquilo que são projectos que ultrapassem a agenda municipal nalgumas áreas e de projectos que pudessem fazer sentir uma grande área ou tema onde se concentrasse o interesse da população. Como na primeira edição a construção da ciclovia. Podendo ser um projecto de qualquer agenda política é também um projecto Público, com dimensão suficiente para agregar num determinado ano, o interesse maioritário das pessoas que particparam, acelerando desde modo a sua concretização.


"OP em 2010"