"Rui Ramos não é um especialista do Estado Novo e usou exactamente o método tão elogiado por Barreto, ou seja, a narrativa não teorizadora. Mas, a problematização é o que de mais aliciante tem a História e que provoca no leitor medianamente culto (o outro lê sempre qualquer coisa, até as Histórias rocambolescas da História de Portugal, pensando que está a ler um livro de História) o gosto pela reflexão crítica, o que — aí concordarei com Rui Ramos, se entender o conceito como eu — o leva a ler a História não “a preto e branco”, mas com todas as cores, ou, por outras palavras, de forma poliédrica.
Ora, se lermos as páginas sobre o Estado Novo da História de Portugal (eu li-as na edição principal e não nesta edição em volumes), não nos apercebemos que Salazar se formou num denso complexo de realidades e de concepções do Estado. Sobressaíam então, para além das teses e práticas republicanas mais radicais que geravam naturais reacções, posições republicanas conservadoras e nacionalistas, o corporativismo católico, com as suas teses sociológicas e pedagógicas, ideias integralistas que jamais apontavam para a noção de uma “monarquia absoluta” (como diz Ramos e que era, ao invés, uma ideia que os integralistas combatiam), ideologias fascistas que surgiram em Portugal logo no contexto da “marcha sobre Roma” e, mais tardiamente, apaixonadas afirmações nacionais-sindicalistas, que não se afastavam mesmo do nazismo nascente. Seguindo a narrativa de Rui Ramos, tudo surge de forma natural, formando-se um Estado onde a regra era “viver habitualmente” (ideologia captada em Salazar, em 1938, por Henri Massis, mas que já se encontra na entrevista de António Ferro), no sentido de uma “nova democracia”, onde a palavra “totalitarismo” era proibida, onde se verificava uma “ditadura moderada” (mais moderada do que na própria República) com uma repressão dirigida (esquecendo as vicissitudes de toda a oposição, fosse ela qual fosse), onde havia uma “pluralidade cultural” (como se tendências de oposição pudessem ser integradas na concepção do Estado Novo e não fossem contra ele e alvo da sua repressão)… Mais ainda: onde havia uma concepção de “assimilação” em relação aos naturais das colónias (só tardiamente notória), onde se deu uma guerra colonial (que conheci, na Guiné, no final dos anos sessenta) em que os movimentos de independência acabaram por ter pouco significado social e até militar, onde as estatísticas provam o desenvolvimento de Portugal (que pode ser um facto em determinadas áreas e conjunturas. (...)"
Luis Reis Torgal, jornal Público, 20.09.12 publicado no Brumas