No dia 25 de Abril, em solidariedade com a Es.col.A da Fontinha no Porto, um grupo de 50 pessoas decidiu ocupar um prédio devoluto na Rua de São Lázaro, em Lisboa.
Num primeiro momento tratou-se de um gesto de solidariedade e de recusa face à prepotência autoritária e à arrogância ilimitada de um presidente de Câmara. Mas após algumas horas no interior do edifício, pareceu-nos que permanecer ali, juntos, construir outra ilha de autonomia e de resistência é a possibilidade mais lógica nestes tempos em que procura impor-se em Portugal e na Europa um regime de miséria, de bastonada e de ataque brutal às nossas vidas. Decidimos, em assembleia e por unanimidade, ficar e responder ao apelo que nos chegou dos amigos da Es.Col.A da Fontinha: criar réplicas!
Nesse mesmo dia à noite recebemos a visita da Polícia Municipal, que identificou as pessoas no interior do edifício e nos informou (depois de confirmar hierarquicamente as suas ordens) que seríamos notificados para abandonar o prédio num prazo de 10 dias.
No dia seguinte a imprensa apressou-se a noticiar a nossa acção e a reacção da CML, na voz da sua vereadora da Habitação, que se opôs à ocupação. Helena Roseta adianta que «há várias formas de demonstrar solidariedade, sem ser a de por um pé em cima dos direitos dos outros». A vereadora da habitação procura desacreditar o colectivo enquanto tenta descalçar a bota que é a impossibilidade lógica de se ser simultaneamente solidário com a ocupação da Es.Col.A no Porto e repressivo com um projecto idêntico em Lisboa. Sem nunca explicar que “direitos” e que “outros” são esses que pisamos com esta ocupação, deixa apenas no ar a impressão que a única coisa que estamos a pisar realmente são as contradições da vereadora. Esta carta é, por isso, um exercício de esclarecimento e de memória em três pontos.
1.
Somos habitantes da cidade de Lisboa que assistem, pensam e criticam há vários anos o modelo de revalorização a que têm sido sujeitos os bairros da cidade. Somos aqueles que vivem na pele o resultado da política de abandono selvagem do centro de Lisboa por parte dos seus maiores proprietários – curiosamente, a Câmara e a Santa Casa da Misericórdia. Um abandono sistemático e programado com consequências criminosas para quem aqui vive, como a manutenção de rendas impossíveis, a impossibilidade de independência dos mais jovens, a retenção e especulação que alimentam e inflacionam o mercado imobiliário dos grandes grupos económicos (veja-se o que aconteceu no Bairro Alto, no Príncipe Real, no Oriente, no Cais do Sodré, em Alfama). Somos nós a diversidade étnica e cultural de que falam nos vossos programas, como agora no AiMouraria. E sabemos bem para que serve o vosso “multiculturalismo”: uma simples estratégia de marketing para esterilizar as nossas ruas e vender mais caro as nossas casas. É a nós que se referem quando numa vossa página de reabilitação urbana anunciam “levar a cultura a quem não tem cultura”. Por isso compreendemos que não vos dê jeito nenhum que nos organizemos para utilizar os espaços que vocês fazem questão de deixar apodrecer. Para aí organizarmos os nossos concertos, projectarmos os nossos filmes, debater as nossas ideias, aprender e ensinar as técnicas que nos permitam adquirir mais conhecimento para conquistar mais liberdade.
2.
Lembramos que o actual executivo da CML, e em particular a equipa do pelouro da Habitação, chefiada pela arquitecta Helena Roseta fez um longo percurso antes de assumir as suas funções actuais, cavalgando um tal artigo 65º da constituição, que diz o seguinte: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. No seu programa eleitoral apregoou o direito à habitação e denunciou as políticas de degradação e abandono do parque habitacional. Por isso sabe bem de que matéria estamos a falar. E quantos de nós se reviram nesse discurso? Quantos de nós começamos só agora a perceber que os assuntos da nossa vida colectiva, a organização das nossas necessidades, enquanto comunidade, terão que ser geridos por nós mesmos, organizados de forma horizontal, autónoma, directa e igualitária? Surpresa das surpresas, a vereadora Helena Roseta, após ter esquecido tudo o que disse até ao dia da sua eleição, vem agora opor-se à ocupação e revitalização de um prédio abandonado. Enquanto o parque habitacional da Câmara continua a cair de podre e o mercado imobiliário especulativo continua a ditar as regras da vida na cidade.
Mas qual não foi o nosso espanto ao descobrir, que enquanto alguns membros da sua equipa mostravam publicamente o seu apoio ao projecto Es.Col.A, a vereadora da Habitação da CML fez passar apressadamente um despacho no dia 16 de Abril deste ano (apenas 3 dias depois de terminar o prazo para o despejo na Fontinha), que visa reduzir de 90 para apenas 10 dias o prazo máximo (após notificação policial) de permanência de ocupantes em edifícios abandonados pela CML. Curiosa coincidência de datas ou pura matreirice?
3.
Há cerca de um ano e meio, no dia 24 de Novembro de 2010, dia de greve geral, alguns de nós ocuparam este mesmo prédio e distribuíram sopa grátis pelos grevistas, na tentativa de prolongar esse momento de união, de reflexão e de luta. Algumas horas depois a Polícia Municipal chegava para despejar com ameaças de violência o projecto de utilização do espaço, sem qualquer tentativa de cumprir os trâmites legais para o despejo. Da parte da CML o silêncio e a declaração lacónica da vereadora Helena Roseta de que não negociava com "ocupas". Mais de um ano e meio depois o que aconteceu? As janelas foram deixadas abertas para que a chuva pudesse apodrecer parte do soalho dos andares de cima, os pombos invadiram o prédio e tornaram-se os seus únicos e corrosivos habitantes. Do projecto que a Câmara alegava ter para o local não se viu nem uma sombra. Hoje, uma semana apenas após a ocupação, o prédio da rua S. Lázaro já recebeu centenas de pessoas, que por lá passaram, por lá comeram e por lá conversaram. Num único fim-de-semana de vida, já ali aconteceram vários concertos, jantares, debates. A gestão da casa, os seus objectivos e actividades são desenhados através de uma assembleia diária aberta em que várias dezenas de pessoas já participaram.
O processo de construção deste projecto ainda agora começou mas já envolve diariamente mais de uma centena de pessoas que decidiram tomar em mãos os assuntos da sua comunidade, que se organizam horizontalmente para auto-gerirem as suas necessidades e os seus desejos. Acreditamos que a única alternativa à vida de miséria que o capitalismo nos propõe é a deserção da economia. A criação de espaços e tempos de autonomia para que cada vez mais esferas da nossa vida possam acontecer fora da lógica do mercado, do dinheiro ou do Estado.
1 de Maio de 2012