Clara Ferreira Alves escreveu este texto sobre a irrelevância de Cavaco Silva. Seria um texto interessante não fosse terminar daquele jeito que nos faz duvidar da natureza de tudo o que é dito antes. Ou não duvidamos e somente assumimos que Clara Ferreira Alves tem de ganhar a vida e é este o estilo que vende, o estilo dir-se-ia com crueldade. Ainda que Cabra Ferreira Alves tenha uma reputação belicosa e snob a defender, o que o texto concluí da origem socio-económico e geográfica do PR acaba por revelar-nos a enorme tacanhez e provincianismo da autora -sim, o provincianismo como descrito por Eça- o das vistas curtas- e com ele ignorar que a mesma pobreza política de Cavaco se encontra nos órgãos políticos dos grandes países europeus bem como nos apêndices ou órgãos nacionais (incluindo os órgãos de comunicação social), provando que a naturalidade de alguém é uma circunstância sociológica( e mais e mais) a ter em conta, e não um factor determinante para o que quer que seja. Se não fosse assim não seria a naturalidade e a formação cosmopolita de Clara Ferreira Alves suficiente para não ter visões tacanhas sobre centro/periferia, órgãos/apêndices, Boliqueime/Santa Comba/Covilhã/Cascais?
A irrelevância cavaquista
DESDE QUE o Presidente Cavaco foi eleito ainda não lhe ouvi uma palavra de jeito. O Presidente alinhava umas palavras em forma de discurso, soletra umas solenidades de circunstância, meia dúzia de lugares-comuns da sensatez e outras tantas banalidades, junta uma pitada de preocupação social e vago fervor patriótico, acrescenta umas generalidades institucionais e já está. Analistas políticos esparsos e à míngua de assunto e de política, desempregados de um regime sem ideologia, pragmático e material, que não pensa, não discute, não argumenta e apenas age e reage, tentam desesperados encontrar em Cavaco um pensamento, uma coerência ideológica ou, dada a necessidade de drama, uma ameaça.
Trabalhos ingratos porque Cavaco nada disto tem para dar. Nunca teve. A sua mediania coloca-o a salvo das grandes perplexidades contemporâneas e o seu desinteresse pela cultura política, ou outra, abrigam-no das interrogações que perturbaram Soares ou Sampaio, infinitamente mais cultos e mais cosmopolitas. Cavaco é o sucessor de Eanes sem a educação sociológica e histórica de Eanes. Ou seja, Eanes tornou-se um quase-intelectual com a passagem do tempo, e Cavaco permaneceu igual a si mesmo, modesto e frugal, limitado e deslocado, amarrado à âncora da sua ignorância. Cavaco detesta tempestades e mar largo, prefere porto seguro e águas calmas. Não seria o Presidente que eu quereria eleger, é o Presidente eleito. Tanto Manuel Alegre como Mário Soares teriam sido melhores Presidentes. Como dizem os cavaquistas conformados, Cavaco não tem mundo. O mal nem é este, o mal é que ele continua a não ter mundo. E o mundo não o tem a ele.
Daí os episódios paroquiais da viagem à Índia, com as queixas do "picante", ou as caricaturas de jornada onde Cavaco seja obrigado a descontrair e fazer humor. Não é o seu género. O seu género é a casa e a família, com umas incursões no país que ele genuinamente sente como seu, a seu modo. Um herói local. E um herói local incensado por um partido fundado por um homem forte e brilhante, Francisco Sá Carneiro. Um PSD que nunca encontrou substituto para o fundador e confundiu pequenas manifestações de autoritarismo e irritação com autoridade e carisma. O PSD inventou Cavaco: barões e intelectuais, bases e cúpulas, populistas e elitistas inventaram um chefe que foi rodar o carro à Figueira da Foz. Ele foi - de facto - rodar o carro à Figueira da Foz e o partido fez o resto. Faz lembrar um filme de Hal Ashby, adaptado de um romance de Jerzy Kozinsky, que conta a história de um homem simples e dado a pequenos aforismos, o jardineiro Mr. Chance, que ascende a Presidente dos Estados Unidos por um conjunto de circunstâncias. "Being There", ou "Bem-vindo Mr. Chance". É a obra-prima do grande Peter Sellers.
Passava-se aquilo num tempo em que Portugal e o mundo eram mais simples e da Europa escorria leite e mel. Cavaco administrou a fortuna misturando a parcimónia e o escrúpulo moral com a amoralidade e a rapina de negociantes políticos que ascenderam a milionários graças ao Estado. Foi um período de fartar vilanagem, e chegou para todos e para duas maiorias absolutas. O currículo académico de Cavaco, um economista mediano, ajudou-o num tempo em que começava o primado da economia sobre a política e em que o défice entrou no léxico nacional. Desígnio para o país Cavaco nunca teve, e plano para o famigerado "desenvolvimento" também não. Ninguém soube ou quis saber o que seria de Portugal daí a vinte anos porque a política portuguesa caracterizava-se pela miopia e o resultado eleitoral. O curto prazo. Pagamos hoje, duramente, as consequências desta ignorância. Sempre imaginei, academicamente, o que teria achado Sá Carneiro do seu sucessor.
O mundo entretanto mudou e o estatuto de Cavaco também. De primeiro-ministro activo passou a Presidente corta-fitas. É um lugar onde ele não faz o dano que faria como chefe do Executivo. As suas inexistências ontológicas continuam, com certa ternura, a mobilizar oráculos e análises com tanto rigor como a astrologia. Ler o desígnio de Cavaco é como ler o horóscopo. Interpretar o seu silêncio é como olhar para as estrelas. Um passatempo inofensivo que se tornou profissão. Os pequenos anúncios dos jornais estão cheios de sábios e professores que lêem o destino alheio. Inventaram a coabitação, como agora inventam o ódio. Nem Sócrates nem Cavaco têm a profundidade que os politólogos desocupados lhes querem atribuir. Embora Sócrates navegue em águas mais fundas que Cavaco. Por tudo isto, devo ser uma das pessoas que não sentiu irritação com o discurso de Cavaco sobre o estatuto político-administrativo dos Açores. É mais uma cena paroquial e uma anedota de Verão. Não estava à espera que ele fosse falar sobre o mundo complexo em que vivemos e vamos viver, com a perspicácia e a inteligência de um homem de Estado. Podemos tirar o rapaz de Boliqueime mas não podemos tirar Boliqueime do rapaz, dir-se-ia com crueldade. O Presidente Cavaco é um rapaz de Boliqueime e isso não é uma coisa boa. Nem má. É o que é. Num grande país europeu como a França, a Alemanha ou a Grã-Bretanha, Cavaco seria um apêndice, nunca um órgão político.
DESDE QUE o Presidente Cavaco foi eleito ainda não lhe ouvi uma palavra de jeito. O Presidente alinhava umas palavras em forma de discurso, soletra umas solenidades de circunstância, meia dúzia de lugares-comuns da sensatez e outras tantas banalidades, junta uma pitada de preocupação social e vago fervor patriótico, acrescenta umas generalidades institucionais e já está. Analistas políticos esparsos e à míngua de assunto e de política, desempregados de um regime sem ideologia, pragmático e material, que não pensa, não discute, não argumenta e apenas age e reage, tentam desesperados encontrar em Cavaco um pensamento, uma coerência ideológica ou, dada a necessidade de drama, uma ameaça.
Trabalhos ingratos porque Cavaco nada disto tem para dar. Nunca teve. A sua mediania coloca-o a salvo das grandes perplexidades contemporâneas e o seu desinteresse pela cultura política, ou outra, abrigam-no das interrogações que perturbaram Soares ou Sampaio, infinitamente mais cultos e mais cosmopolitas. Cavaco é o sucessor de Eanes sem a educação sociológica e histórica de Eanes. Ou seja, Eanes tornou-se um quase-intelectual com a passagem do tempo, e Cavaco permaneceu igual a si mesmo, modesto e frugal, limitado e deslocado, amarrado à âncora da sua ignorância. Cavaco detesta tempestades e mar largo, prefere porto seguro e águas calmas. Não seria o Presidente que eu quereria eleger, é o Presidente eleito. Tanto Manuel Alegre como Mário Soares teriam sido melhores Presidentes. Como dizem os cavaquistas conformados, Cavaco não tem mundo. O mal nem é este, o mal é que ele continua a não ter mundo. E o mundo não o tem a ele.
Daí os episódios paroquiais da viagem à Índia, com as queixas do "picante", ou as caricaturas de jornada onde Cavaco seja obrigado a descontrair e fazer humor. Não é o seu género. O seu género é a casa e a família, com umas incursões no país que ele genuinamente sente como seu, a seu modo. Um herói local. E um herói local incensado por um partido fundado por um homem forte e brilhante, Francisco Sá Carneiro. Um PSD que nunca encontrou substituto para o fundador e confundiu pequenas manifestações de autoritarismo e irritação com autoridade e carisma. O PSD inventou Cavaco: barões e intelectuais, bases e cúpulas, populistas e elitistas inventaram um chefe que foi rodar o carro à Figueira da Foz. Ele foi - de facto - rodar o carro à Figueira da Foz e o partido fez o resto. Faz lembrar um filme de Hal Ashby, adaptado de um romance de Jerzy Kozinsky, que conta a história de um homem simples e dado a pequenos aforismos, o jardineiro Mr. Chance, que ascende a Presidente dos Estados Unidos por um conjunto de circunstâncias. "Being There", ou "Bem-vindo Mr. Chance". É a obra-prima do grande Peter Sellers.
Passava-se aquilo num tempo em que Portugal e o mundo eram mais simples e da Europa escorria leite e mel. Cavaco administrou a fortuna misturando a parcimónia e o escrúpulo moral com a amoralidade e a rapina de negociantes políticos que ascenderam a milionários graças ao Estado. Foi um período de fartar vilanagem, e chegou para todos e para duas maiorias absolutas. O currículo académico de Cavaco, um economista mediano, ajudou-o num tempo em que começava o primado da economia sobre a política e em que o défice entrou no léxico nacional. Desígnio para o país Cavaco nunca teve, e plano para o famigerado "desenvolvimento" também não. Ninguém soube ou quis saber o que seria de Portugal daí a vinte anos porque a política portuguesa caracterizava-se pela miopia e o resultado eleitoral. O curto prazo. Pagamos hoje, duramente, as consequências desta ignorância. Sempre imaginei, academicamente, o que teria achado Sá Carneiro do seu sucessor.
O mundo entretanto mudou e o estatuto de Cavaco também. De primeiro-ministro activo passou a Presidente corta-fitas. É um lugar onde ele não faz o dano que faria como chefe do Executivo. As suas inexistências ontológicas continuam, com certa ternura, a mobilizar oráculos e análises com tanto rigor como a astrologia. Ler o desígnio de Cavaco é como ler o horóscopo. Interpretar o seu silêncio é como olhar para as estrelas. Um passatempo inofensivo que se tornou profissão. Os pequenos anúncios dos jornais estão cheios de sábios e professores que lêem o destino alheio. Inventaram a coabitação, como agora inventam o ódio. Nem Sócrates nem Cavaco têm a profundidade que os politólogos desocupados lhes querem atribuir. Embora Sócrates navegue em águas mais fundas que Cavaco. Por tudo isto, devo ser uma das pessoas que não sentiu irritação com o discurso de Cavaco sobre o estatuto político-administrativo dos Açores. É mais uma cena paroquial e uma anedota de Verão. Não estava à espera que ele fosse falar sobre o mundo complexo em que vivemos e vamos viver, com a perspicácia e a inteligência de um homem de Estado. Podemos tirar o rapaz de Boliqueime mas não podemos tirar Boliqueime do rapaz, dir-se-ia com crueldade. O Presidente Cavaco é um rapaz de Boliqueime e isso não é uma coisa boa. Nem má. É o que é. Num grande país europeu como a França, a Alemanha ou a Grã-Bretanha, Cavaco seria um apêndice, nunca um órgão político.
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