09 julho 2005

Crónica de Inês Pedrosa

A melhor estratégia é não ter estratégia. Quando a estratégia é postiça em relação à mensagem que se pretende transmitir, acaba por estalar, como verniz velho – e, o que é pior, acaba por corromper aprópria mensagem, porque o público-alvo acaba por se sentir enganado.Isto é válido para públicos compostos por um ser humano como para multidões: para dar um exemplo corriqueiro, se o Joãozinho se apaixonapor nós porque soubemos fazer de conta que éramos umas vampes indiferentes como a Mariazinha por quem ele se embeiçou antes, vaifartar-se de nós no dia em que descobrir que somos umas fogosas apaixonadas. Se formos um bocadinho inteligentes, acabaremos por descortinar que o Joãozinho é apenas uma fruste perda de tempo: afinal,quem quer amar alguém que não sabe amar perdidamente? Estratégias leva-as o vento, e o que fica, de uma maneira ou de outra, é o resíduoda nossa verdade. Ninguém aguenta sentir-se enganado; qualquer verdade ingrata é pior do que uma mentira grata, e a mentira, neste país emforma de mesa de repasto, tem a pernita curta. Quando me convidaram para apadrinhar a Marcha Gay e Lésbica deste ano, logo uma sequência de vozes familiares e amigas se erguerampara me dizer uma destas três coisas, ou todas elas: a) que uma marcha éuma má estratégia de defesa de direitos porque expõe muito as pessoas;b) que aparecer ao lado «deles» (suponho que queriam dizer «essa gente diferente e de maus costumes») prejudicaria a minha «imagem»; c) que aoRui Zink não faria mal, porque é homem, mas que, sendo eu mulher, tinha que pensar na minha «reputação».No fundo, não é de espantar: a Marcha ocorreu no fim da mesma semana emque múltiplas e supostamente democráticas vozes vieram dizer que odireito à greve fenece quando a dita greve prejudica «os mais fracos» –no caso, os estudantes. Estabeleceu-se mesmo uma nova noção de «serviços mínimos» que abrange os exames. Pergunto: se os estudantes fizerem exames uma semana mais tarde, já esqueceram a matéria toda? Alguma greve alguma vez prejudicou apenas «os mais fortes»? Para que serve uma greve que não prejudica ninguém? Claro: se o governo que assim se move contrao direito à greve fosse assumidamente de direita, já estaria o povo todo,comentadores incluídos,a bradar que o fascismo estava de regresso. Como se trata de um governo do Partido Socialista, arranjam-se milhares de justificações.O meu irmão costuma dizer que «só justifica quem perde». Considera-se que uma Marcha é uma alegria popular se forpara dançar o vira ou para clamar por abstracções, como a «Paz». Mas se for para lutar por direitos – como esse, tão concreto, tão constitucional, do casamento civil entre pessoas que se amam, independentemente do sexo – já é uma pouca-vergonha. Incomoda, porque aparecem sempre uns travestis emplumados. As heterossexuais nuas que surgem nos desfiles de carnaval são consideradas espectáculo de família.Porque é que um transexual incomoda tanta gente? A mim, o que me incomoda é que Portugal seja ainda tão pouco exibido, tão cheio de entrementes, bichanices covardes, esquemas ocultos... enfim,estratégias. E lá fui marchar. Pude assim verificar in loco que as plumas e pailletes que tanto perturbam o sossego familiar das famílias ditas tradicionais se resumiam, numa marcha de quinhentos seres humanos, a meia dúzia de pessoas. Aproveitam o pretexto para ter os seus cinco minutos de glória e promover os seus shows. Tomar os travestis como paradigma homossexual é tão disparatado como considerar o Avelino Ferreira Torres da Quintadas Celebridades como modelo dos autarcas portugueses. Parecem sempre muitas, estas figuras folclóricas, nas televisões, porque é sobre elas que as câmaras caem – e evidentemente que entrevistar travestis sobre o casamento ou a adopção por homossexuais só serve para assustar apopulação e criar mais homofobia. Pude também verificar que, se há ainda pouca gente para marchar por estes temas de direitos humanos, há muita gente disposta a engrossar a marcha dos voyeurs, seguindo o cortejo, no recato do passeio, de câmara em punho, avenida abaixo. Com tristeza verifiquei ainda a total ausência das figuras gradas da política. Não estranhei a ausência do Presidente da Câmara até porque, como Rui Zink explicou à SIC, ninguém sabe quem é actualmente o Presidente da Câmarade Lisboa. Mas onde se meteram, nesta tarde de luta pela não discriminação, todos os estrénuos democratas do país? Outras vozes, um pouco mais elásticas, aconselharam-me a que discursasse sempre e só a favor do casamento e nunca a favor da adopção– porque esse é terreno estrategicamente minado: «Que se casem, estábem, mas que adoptem crianças já não me parece bem porque as criançasficam marcadas...». Este discurso é igual, no tom e no conteúdo, àqueleoutro que reza assim: «Eu não sou racista, mas não gostava que a minha filha se casasse com um negro, porque os filhos deles iriam ser discriminados...». Quantas crianças vivem só com a mãe? E aquelas – as da Casa Pia, por exemplo – que nunca conheceram pai nem mãe?E as Vanessas e Joanas que são brutalizadas e mortas pelos pais? Normalmente,os homossexuais e lésbicas têm irmãos heterossexuais – o que prova que a orientação sexual não depende da educação. Se a adopção por casais do mesmo sexo estivesse instituída, as crianças não se sentiriam discriminadas por terem uma família «diferente».Claro que não se pode entregar uma criança de ânimo leve – mas são os valores e o estilo devida dos adoptantes o que interessa, não a sua orientação sexual.Pensem. Se todos fizéssemos um esforço por pensar clara e livremente, libertando-nos do peso fatídico das ideias feitas, Portugal seria umoutro país – muito mais justo, e tão belo como a Avenida da Liberdade, cheia de gente unida pelo direito ao Amor, numa tarde de sol e vento.



Uma crónica muito boa tirando a comparação entre os travestis e o Avelino Ferreira Torres, não quer dizer que não esteja certa em dizer que nem travestis nem dragqueens são paradigmas da suposta cultura gay mas fazem parte dela de corpo inteiro, assumido, alegre, corajoso e a comunidade lgbt devia orgulhar-se das suas plumas. O que já não podemos dizer dos autarcas em relação ao Avelino e a outros como ele.

2 comentários:

sotavento disse...

Uma vez, num debate sobre quão diferentes são as famílias de hoje: divórcios, novas uniões, etc; surgiu também, vindo dos miúdos, a possibilidade de se ter pais homossexuais, no fim do debate, um miúdo que tinha estado calado disse "parece-me que é só uma questão de hábito, se for só um caso, as pessoas estranham mas se forem sendo muitos, as pessoas passam a achar normal"!...
Era um simples miúdo, com uma visão muito simples. Serão, então, os adultos que tudo complicam?!...

Anónimo disse...

Em 1º lugar os meus parabens por não se ter deixado travar pelos costumes ainda forte/ catolicistas que barram o direito à diferença e à liberdade sexual. Como o "tempo" é curto, acabo a defender a adopção de crianças por homosexuais; o que embala uma criança, o que lhe dá educação e bases sólidas para se tornar um indivíduo sério e honesto nos seus ideais e convicções não são preconceitos nem tradições seculares mas antes amor e harmonia dentro do meio onde está inserida. O 1º casal a casar em Espanha "só tinha" 30 anos de união. Palavras para quê?