23 outubro 2025

Os ‘gajos’ e os véus


Maria Cardeira da Silva

Professora Associada de Antropologia, NOVA - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

Segui o debate todo e pude testemunhar que, ao contrário do que a bancada do Chega alegou na 6ª feira na apresentação da Assembleia sobre o projeto de Lei «Proíbe a ocultação do rosto em espaços públicos salvo determinadas exceções», os ‘gajos’ a que Rui Tavares se referiu eram aqueles que, em várias partes do mundo, obrigam as mulheres muçulmanas a usar a burca ou qualquer outra indumentária por razões de ordem religiosa ou política. Eu, como ele, mas sem filiação política, sou declaradamente, também, contra esses. Mas também sou contra aqueles que de forma ignorante e arbitrária se arvoram em feministas para estigmatizar culturas, comunidades e religiões e alimentar a islamofobia.


Apesar do título do projeto submetido não remeter para qualquer conotação étnica ou religiosa, escusando-se assim a críticas de discriminação à cabeça, a exposição de motivos do Projeto Lei inicia o seu articulado sustentando-o na laicidade do Estado, dizendo que «motivos não se alcançam para que possam adotar-se e permitir-se a exibição de símbolos religiosos em instituições públicas». A discriminação torna-se ainda mais obvia de seguida, quando se remete para «o entendimento da República Francesa, que consagra já uma larga história em impedir a evocação de símbolos religiosos ou ostensivos e que […] viria a publicar, em 2010, a LEI […] que proíbe a ocultação do rosto em espaços públicos». Mais conhecida por lei anti burca…

O projeto agora submetido pelo Chega e apoiado pelo PSD, pelo CDS e pela IL, é fruto de uma islamofobia global e desentrincheirada que serve os extremismos de direita, e que junta fantasmas e argumentários com diferentes origens, sem que haja sequer qualquer sustentação social ou, ainda menos, razão histórica portuguesa para nenhum deles. À falta de combustível para inflamar o alarme islamófobo em Portugal, o Chega importa-o, avançando e divulgando uma proposta de lei desnecessária: Não há crime? Propõe-se lei!

Se mais não houvesse para prová-lo, é a própria ambiguidade e inconsistência entre duas visões políticas contrastantes, ambas ilusórias, somadas avulso no mesmo argumentário – uma que vê as mulheres muçulmanas como vítimas que é preciso libertar – outra, contrastante, que as vê como potenciais terroristas – que demonstra que esta proposta da direita para a proibição da burca em espaço público (foi assim expressamente apresentada durante todo o debate pelos proponentes) é arbitrária e discriminatória.

Ignorando a contradição, o Chega avança com as duas ideias porque alguma delas há de colher para alimentar a guerra contra a imigração, sendo que nenhuma é fundamentada na razão social e histórica-identitária de Portugal: porque, como aliás tem sido inscrito até agora nas retóricas oficiais, as relações com as comunidades islâmicas em Portugal têm sido pacíficas (alegadamente por causa das suas relações históricas e heranças partilhadas); e porque o número de burcas em circulação em Portugal não configura uma ameaça de segurança (estando já previstas restrições à ocultação do rosto na legislação portuguesa).


Em França, aquilo que ficou cristalizado pelo projeto colonialista como ‘o véu’ ganhou dimensões históricas fantasmagóricas. O véu foi instrumento privilegiado do projeto da mission civilizatrice e sujeito a medidas draconianas como o desenroupar forçado, em ritual público, dos haik-s das mulheres argelinas, executado pelas esposas dos generais do estado maior em 1958. Foi essa razia empreendida pelo secularismo radical francês que levou a que muitas mulheres que nunca haviam usado o haik, o envergassem transformando-o, então sim, em instrumento de resistência. Assim surgiu o fantasma da mulher-bomba que viria a povoar indelevelmente o imaginário francês e que, alimentado pela direita xenófoba, prosseguiu a lógica colonial, em território nacional, com sucessivas proibições do hijab nas escolas, e depois da burca em todos os espaços públicos.


A burca (que, tal como o haik era um véu mais cultural ou étnico do que religioso, usado apenas pelas mulheres pashtun) foi, entretanto usada como argumento para a invasão do Afeganistão, com Barbara Bush à cabeça de um projeto feminista liberal e salvacionista que, terminado o seu projeto falhado, deixou as mulheres à mercê de uma realidade que social e culturalmente nunca o acolheu, arruinando o trabalho local de organizações que há muito lutavam pelas suas próprias armas e nos seus próprios termos pela emancipação feminina. O fardo do homem branco (Kipling), ou o colonialismo a insistir em como fazer-lhes o bem, apesar deles próprios (Fanon).


Já para os britânicos, sobretudo depois de uma primeira proposta de proibição em 2006, o uso do véu veio a epitomizar o falhanço do multiculturalismo trazido da gestão do Império para a Metrópole contemporânea dos imigrantes. No debate então encetado, encontram-se dois argumentos igualmente ilusórios: o de que ‘o véu’ é um elemento cultural alheio à Europa (o que sabemos nem ser verdade, primeiro porque o Islão não é de todo alheio à constituição ‘civilizacional’ europeia e, segundo, porque sempre existiram aqui formas de recobrimento do corpo associadas a valores de modéstia e conformidade) e, por outro lado, o de que o Reino Unido havia sido ‘demasiado tolerante’ para com as ‘outras culturas’.


Tal como nestes países, o debate agora importado para Portugal, com um passado colonial e migratório completamente diferente, tem ignorado o fato pertinente de que muitos países de maioria islâmica tomaram até a dianteira nestas proibições, por razões políticas e de gestão do Islão no ideário nacionalista pós-

independentista ou pós-revolucionário – por exemplo, a Turquia, e mais tarde a Tunísia. Já outros, pelas mesmas razões, mas ao contrário, impuseram o velamento: o Irão, mas também a Arábia Saudita, com a qual a Europa estabelece relações cada vez mais próximas e que mantém o rigor que inspira o regime, que é

uma das versões mais salafitas (fundamentalistas) do Islão: o whahabismo.


A apresentação deste projeto de Lei só é possível pela falta de reflexão e posicionamento sério e de fundo relativo aos modos de ‘integração’ ou, melhor, do modelo de sociedade que queremos para Portugal, revelando assim de modo alarmante o enorme perigo que esse espaço aberto deixa para a invasão da democracia com populismos xenófobos globais.

A retórica política dominante relativa a gestão da diversidade cultural presente em Portugal tem sido a de um luso-tropicalismo florido, herdado do contexto político do Estado Novo, que se tem travestido numa espécie de multiculturalismo ‘suave’ que articula a lógica de mercado liberal contemporâneo com razões de Estado, admitindo uma diversidade cultural temperada e exibicionista de cozinha, música ou roupa étnica. Uma diversidade até encorajada, mas apenas na justa medida em que resulte em valor económico e/ ou político através, por exemplo, da diplomacia cultural. Mesmo o projeto do ‘Diálogo de Civilizações’ bondosamente encetado por Jorge Sampaio, nunca camuflou, nem resolveu politicamente, o princípio de alteridade reificada e subjacente no slogan sonante da medida.

O debate que se inaugurou no dia 17 de outubro não é acerca deles, nem delas nem da burca: é à cerca de todos nós. E, por isso, não podemos ceder a tentação – nem ao gesto político a que alguns o estão votando – de não lhe darmos muita importância para minorar o seu tempo de antena e efeitos discriminatórios. O debate não deve, contudo, centrar-se na burca, porque esse não é ‘o problema’, mas sim na definição de uma política de gestão da diversidade cultural e estratégias claras para a sua implementação. Se não o fizermos, outros projetos como este, aparentemente pequenos e inócuos, irão tracejando por nós o caminho minado do futuro de todos.