Por Lucinda Fonseca Correia
Arquitecta Artéria Arquitectura
"Na vida de hoje, o mundo só pertence aos
estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a
triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se
conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação."
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego
Arquitectura é transformação. Arquitectura é interferência com a
vida. Arquitectura é recordação e esquecimento. Arquitectura é permissão
e interdição e por isso é fundamentalmente ordem. A Arquitectura
torna-se “política”
1
na medida em que o seu exercício resulta da afinidade óbvia entre
espaço e poder, de outro modo, não se legitimaria como uma profissão
liberal de interesse público.
Uma arquitectura de risco
Num primeiro plano, a Arquitectura é a construção de um cenário onde o
jogo cultural se desenrola, pois, em determinado sentido enquadra, fixa
e torna significativa a vida e as relações humanas. Acresce que esse
sentido depende sempre de um sistema de valores “culturais”. Sem
Arquitectura certamente poríamos em causa a nossa identidade como
protagonistas de uma ficção a que chamamos Mundo. Aliás, a Cultura faz
isso mesmo: inventa o mundo como cenário
2.
E ao inventá-lo dita os termos em que estamos aptos para lidar com ele.
É compreensível, pois, que ofereçamos sempre resistência a qualquer
alteração que ponha em causa a nossa identidade. Por outro lado, o que a
Arquitectura faz é artificializar o espaço natural de modo a criar
dispositivos que acolham a vida em sociedade. Todavia, a transformação
do
habitat natural em artificial já não se opera sem riscos
3.
Tal facto, paradoxalmente, legitima e torna urgente uma revisão
profunda dos termos em que aquele sistema de valores regula as nossas
acções transformadoras sobre o mundo. A consciência do risco começou já a
atormentar-nos. Subitamente, somos confrontados com a realidade dos
factos: quando é que o efeito de estufa se torna irreversível?; quanto
tempo falta para que a vida nos oceanos se extinga?; o que resta da água
potável no mundo?; como é que se detectam definitivamente os sintomas
da ocorrência de um colapso geral, nos sistemas de suporte da vida no
planeta? Temos todos noção disto mas “olimpicamente” ignoramo-lo.
Ainda que não queiramos admiti-lo, não estará também, por analogia (e
cumplicidade) a Arquitectura a “colapsar”? E esse colapso dar-se-á no
sentido desta deixar de cumprir o seu objectivo essencial: hospedar a
Humanidade. Já sabemos o que custa ao Ambiente construir, transformar e
manter o parque habitacional terrestre. De facto, esses cálculos estão
feitos: no final de cada ano constatamos que gastámos quase o dobro dos
recursos produzidos pelo planeta, durante esse mesmo período
4.
Nestes dados estão incluídos os efeitos da actividade construtiva
humana, onde se inclui também a Arquitectura. Assim, por uma questão de
justiça, os arquitectos devem pois sentar-se no divã do terapeuta e
rever os passos da sua carreira dos últimos 200 anos. E para fazê-lo é
necessário estabelecer critérios, à luz dos quais poderá ser levada a
cabo uma auto-análise útil para os negócios do mundo. Todos aguardamos
respostas, receitas, revelações, iluminações, como curto-circuitos de um
raciocínio que tarda a emergir por entre os devaneios quotidianos que, fundamentalmente, enfatizam a “criatividade” ilimitada dos
arquitectos (e outros projectistas). No entanto, este paradoxo só se
desfará se esse exame crítico do passado for honesto, franco e
desinteressado.
O valor da memória
Para além das questões ambientais, no sentido amplo do termo, a
necessidade de manutenção desse cenário dita, em segundo plano, a lógica
dos “critérios” de quem intervém no construído, pretendendo consertar o
velho. Aqui inscreve-se, com toda a propriedade, a ideia de intervenção
no património. Em primeiro lugar, porque se trata concretamente de um
património que não se pode transformar a todo o custo ou sobretudo à
custa da nossa memória. Em segundo lugar, porque o efeito pedagógico da
manutenção desse património deve suplantar quaisquer vantagens
económicas ou políticas.
E, porque nos interessa defender o património? Como suporte
privilegiado da memória colectiva, o património veicula aspectos
essenciais da nossa identidade. Daí também valer para a Arquitectura a ideia de monumento
5 enquanto receptáculo daquilo que é digno ser lembrado.
Por outro lado, não devemos esquecer que os edifícios antigos, com
qualidade, não morrem – apenas parecem resistir aos usos, tantas vezes
insensíveis e ignorantes que lhes foram impostos pelos diferentes
tempos. Trata-se então de gerir modos de habitar? Sejamos precisos: como
é que costumamos prevenir um “mau” uso, ou seja, aquilo que
consideramos ser uma utilização indevida de um edifício com carácter?
Partimos do princípio segundo o qual um edifício com “carácter” é
aquele que soube preservar, com grande clareza, uma memória
institucional
6.
Isto acontece tornando os edifícios inacessíveis ao uso –
musealizando-os – ou, pelo contrário, tornando-os acessíveis a um novo
uso. Só o facto de lhes alterarmos a função e de os reformarmos como se
se tratassem de objectos obsoletos que apenas merecem renascer como
partes de outros dispositivos mais “actuais” ou, ainda, de lhes
acoplarmos novos arranjos construídos onde ganham o estatuto de
espectáculo gratuito, aquilo a que amiúde se chama “fachadismo”, demonstra quão
equívoca é a nossa relação com o “património”. As intervenções com
“manutenção das fachadas” deverão ser encaradas como um embalsamamento
dos edifícios, já que ao desmiolar o objecto, retira-se-lhe a lógica da
sua concepção e as qualidades que deram sentido à obra. O interior
existe sempre numa relação dialética com o exterior que cada cultura
explora a partir da oposição entre o privado e público. É um processo
muito complexo e só irresponsavelmente, poderá ser considerado de ânimo
leve.
Pedagogias do património
A delicadeza das intervenções no património exige que politicamente
se promovam discussões públicas ou se lancem concursos garantindo a
isenção da escolha de soluções adequadas, de acordo com as boas
práticas. O próprio conceito de concurso para intervenção no património pretende garantir a qualidade
do gesto interventivo, como se o arquitecto – tantas vezes considerado
um “demiurgo” e/ou profissional de renome – pela sua intervenção pudesse
“santificar” um eventual crime – o da destruição do património. Isto
porque as memórias das quais o património é portador, de um modo geral,
perdem-se a cada nova “re-novação”. E os arquitectos sabem-no... Não nos
iludamos, os concursos fazem parte do esquema geral do exercício do
poder. Trata-se sobretudo de uma questão ideológica, para além das
idiossincracias dos projectistas concorrentes. Neste contexto, para
sermos rigorosos, quem destrói o património é quem estabelece os
critérios do concurso, bem como o júri que os aplica. Porque, na
verdade, um concurso é algo de muito abstracto pois não há uma
metodologia universalmente aplicável à conservação ou à substituição das
memórias. Podemos considerar que é sempre uma escolha entre manutenção e
supressão, pois a Arquitectura, mais do que a palavra escrita ou a
imagem, é o melhor receptáculo da memória.
A célebre frase de Churchill,
nós formamos os edifícios e depois eles formam-nos a nós 7,
não fará definitivamente sentido? É que os gostos e as circunstâncias
políticas são contingentes. É que a moda do reconhecimento público de um
profissional é sempre transitória. É que o “espectáculo” da
Arquitectura não é um verdadeiro espectáculo.O gesto interventivo pode apagar, e habitualmente apaga, aquilo que
demorou séculos e dezenas de gerações a construir. Quem somos para pôr
em causa a pedagogia de uma certa forma de memória colectiva que a
cidade nos deverá oferecer? Poder-se-á sempre objectar que os tempos
mudam e é necessário actualizar os dispositivos de uso, é verdade.
Todavia, se essa “actualização” não surge espontaneamente, de acordo com
a vida dos actores da cena urbana, mas, pelo contrário, através da
vontade e interesses dos decisores políticos aquilo que se pode obter é
um resultado que, só por milagre, não redundará em algo de artificial e
desequilibrado.
O arquitectura e o seu público
A sistematização dos saberes, das formas e dos modos de fazer tem uma
utilidade limitada. A Arquitectura não é puramente forma, não é algo de
autónomo, de isolado, de conceptual que vale pela impressão estética
que nos causa ou pelo desafio técnico que parece representar. A
Arquitectura não é um jogo. A Arquitectura é, no mínimo, a hipótese de
sobrevivência de uma comunidade num espaço que lhe é próprio.
Relembremo-lo: institui ordem; impõe usos e suporta uma Cultura. Isso,
obviamente, não quer dizer que não evolua. E que as formas não são
apenas o resultado da lógica de operações construtivas. Tudo o que o
homem produz tem um qualquer antecedente. Se não houver melhor
fundamentação para as formas, só o facto destas remeterem para algo que
deve ser relembrado ou comemorado parece já ser suficiente. E esse será o
modo de mantermos presentes os princípios de um determinado sistema de
valores que nos interessa ver reconhecido ou actualizado
8.
A legislação deveria garanti-lo e, ironicamente, a discricionariedade
política proíbe ou autoriza vários olhares técnicos sobre o mesmo
objecto. Em tudo isto parece legitimar-se uma permissividade ilimitada
(ou limitada a certos interesses). Mas, quem é o público da
Arquitectura? Os arquitectos, eles próprios, os clientes/promotores ou
as pessoas/utilizadores?
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É urgente desmontar este mito de colecção de formas, de conteúdos ou
de meras intenções, isto é, respectivamente, de simbologias, de
sociologias ou de pseudo-psicologias
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que modelou a cultura arquitectónica e que se tornou apanágio do século
XVIII, quando se “re-organiza” o Mundo a partir de um saber
enciclopédico, que durou até aos nossos dias. Ainda que a Arquitectura
ingenuamente
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coleccione modos de responder formalmente às complexas variações dos
usos e das práticas espaciais, em cada tempo, mesmo com a aprovação
embevecida da “intelligentsia”, não se faz Arquitectura contra as
pessoas. Terá a Arquitectura chegado a um beco sem saída?
texto publicado no
Jornal Arquitectos