Parto do princípio de que o património acumulado nos edifícios do antigo Hospital Miguel Bombarda e nos ainda Hospitais de Santa Marta, Santo António dos Capuchos e São José é não apenas relevante sob o ponto de vista histórico e hospitalar mas também sob o ponto de vista arquitectónico e artístico. Na minha qualidade de historiador de arte e ollisipógrafo, creio que se trata de conjuntos por demais relevantes em termos de arquitectura e de acervos artísticos, e por isso tenho pugnado pela sua salvaguarda integral desde que, acompanhando a desafectação de serviços, surgiram propostas visando a destruição de parte substancial desse património.
Para nós, e tomando a definição de bem patrimonial veiculado pelo Arq. José Aguiar, Património é tanto a obra-de-arte a ruína, o objecto-construção, a arquitectura de um edifício (o monumento clássico), como o lugar-ambiente, os núcleos urbanos a que (mal) chamamos centros históricos, ou seja, a cidade antiga e a cidade consolidada.
É património o território e a paisagem humanizada, enquanto arquitecturas de vasta escala, ou seja, organizações voluntárias do espaço feitas por (e portadoras dos valores dos) homens. É também património (intangível) o saber que permitiu projectar, construir, manter ou alterar».
No caso dos quatro hospitais ameaçados, que foram conventos de franciscanos, dominicanos, vicentinos e jesuítas com origens arcanas e mantendo recheios artísticos e científicos de primeira ordem, defendemos desde sempre o caminho da revitalização desses patrimónios sem amputar o existente, ao contrário do que quiseram e querem impôr os projectos da ESTAMO. A valia arquitectónica dos quatro hospitais da Colina é inquestionável e documenta um percurso desde o Maneirismo ao XIX, com corpos da responsabilidade de arquitectos como Nicolau de Frias e Baltazar Álvares, no século XVI, João Antunes no fim do XVII, ou José Maria Nepomuceno, autor do célebre Pavilhão Panóptico do Miguel Bombarda, jóia do racionalismo oitocentista, bem estudado pelo Dr. Vítor Freire, e também colecções preciosas de arte, como a azulejaria que enriquece os quatro conventos – na sua maioria dos séculos XVII e XVIII, estudada por especialistas como Santos Simões, José Meco, Barros Veloso e Isabel Almasqué, já aliás devidamente inventariada pelos técnicos da Rede Temática em Estudos de Azulejaria e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões da Faculdade de Letras de Lisboa, com um banco de dados exaustivo.
Independentemente da qualidade arquitectónica e artística das propostas de projecto da ESTAMO, e do mérito dos seus proponentes, o que esteve e está em causa é a violação do «espírito de lugar» sacrificado a uma cega lógica especulativa de «rentabilização a todo o custo», como se os edifícios antigos, por existirem, fossem um estorvo para os gabinetes ditos de reabilitação urbana ! Ora, seja qual for o destino que venham a ter estes ex-conventos que foram ex-hospitais, eles têm de ser considerados, à lupa, como mais-valias do tecido histórico-cultural da cidade... Num momento em que as ameaças de destruição estão temporariamente travadas, face à decisão da Assembleia Municipal, é ainda mais urgente e imperioso avançar com propostas de salvaguarda e alternativas de utilização, incluindo as museológicas, mostrando claramente o repúdio por qualquer ‘solução final’ destrutiva, como a que se desenhava – a qual nem sequer respeitava as ZEP's dos edifícios classificados envolvidos no processo e que esquecia mesmo uma proposta de classificação do ex-Miguel Bombarda em análise da DGPC…
A incapacidade de saber intervir com sensibilidade, e as más decisões pautadas pelo afã do lucro, originam atentados patrimoniais sem remissão, e este seria de imensas proporções, a ser cumprido, tanto na componente patrimonial e histórico-artística, como no impacto ambiental, na descaracterização da zona e na perda de serviços da comunidade. A ausência de «perspectivas estratégicas» (cuja busca, em princípio, deveria ter envolvido todas as partes, da CML à SEC, Universidades, associações de cultura, historiadores, arqueólogos, comunidade), esteve arredada da parte de quem, face aos dados conhecidos, apenas pretendeu e pretende destruir sem sofismas para «construir com aval em nome do progresso». Mas afinal que progresso é este ? Refutamos que o país histórico só exista à medida da conveniência de grandes interesses. Não é verdade quem diz que só existem duas opções para estes espaços patrimoniais: ou se deixa como está por ditame de um patrimonialismo serôdio, ou se avança com projectos e funcionalidades previamente determinadas, mesmo que estas apaguem as «memórias valorativas» dos espaços.
É certo que as cidades crescem, geram dinâmicas e novos patrimónios, mas não se aceita que esse processo se faça destruindo testemunhos históricos tão relevantes, negando-lhes valia, como é o caso dos corpos hospitalares oitocentistas de Rilhafoles e Capuchos condenados pela ESTAMO ao camartelo... Há sempre alternativas sustentadas, que passam decerto por nova construção pontual, em intervenção micro-arquitectónica sustentada, como defende o Arq. José Aguiar como princípio a seguir, mas mesmo essas não poderão prescindir da conservação do existente, respeitando as áreas de protecção dos imóveis classificados e suas linhas de evolução, tomando como base a qualidade dos edifícios, pensando serviços adequados, como centros culturais, laboratórios, pólos de vivenciação, o museu de História da Medicina que se pretende criar, sem deixar de reforçar o Museu de Arte Outsider já instalado no Miguel Bombarda e que é, no seu acervo, um dos mais importantes do mundo... tudo reflectido e pensado, sempre, com respeito pelo princípio do «espírito de lugar», de que uma cidade como Lisboa não pode prescindir.
Existe alternativa aos projectos da ESTAMO, que equilibre a reconstrução com a conservação, a pontual demolição de excrescências com a valorização efectiva da Colina como todo, a rentabilização de partes com musealização de outras. É o que se espera da parte da CML para o futuro da Colina – e não o cenário apocalíptico que se quis impõr como facto consumado, depois de apagar a memória histórica e hospitalar das existências. É certo que o futuro não se constrói só a defender o passado, mas seguramente não se constrói se alienarmos esse mesmo passado. Existem sempre alternativas quando os agentes, técnicos e comunidade, sabem destacar o essencial: a dignificação de Lisboa, acima de interesses especulativos e falaciosas argumentações que visam a des-memória do tecido olisiponense. Está em causa, enfim, uma questão que à classe médica é muito querida: a História da Medicina em Portugal e a sua memória, física e museológica.
O património comum une passado, presente e futuro numa intimidade de interstícios, pelo que a reabilitação dos lugares históricos só pode mesmo ser cruzada com o sentido da sua dignificação plena. Exige-se perspectiva responsável e aberta, que só faz sentido se Património, Herança e Memória caminharem de mãos dadas. É preciso que a lucidez faça doutrina, inflectindo o processo que ameaça com destruições sem remissão os ex-conventos de Rilhafoles, Santa Marta e Santo António dos Capuchos e o ex-Colégio de Santo Antão.
Vítor Serrão
(texto da minha intervenção no Debate Cívico a 29 de Março, na Sociedade de Geografia, organizado pelo ICOMOS-Portugal, o ICOM-Portugal, a Secção de História da Medicina da Sociedade de Geografia de Lisboa e o Núcleo de História da Medicina da Ordem dos Médicos).
Imagens obtidas no Hospital Miguel Bombarda em 2010