24 fevereiro 2022

Diário da bica

Não há uma bica igual a outra. Como o cheiro de uma pessoa. Podemos esquecer-nos ou não nos lembrarmos, até que o paladar aberto, a luz do dia e as circunstâncias exatas daquela máquina e daquelas sementes apanhadas, transportadas torradas e conservadas, nos façam acordar pelos sentidos, a memória ou a descoberta da primeira vez. A busca incessante desse momento inaugural tranquiliza, dá sequência ao ponto alto do dia.

18 fevereiro 2022

Diário da Bica

Volto ao momento no pequeno balcão do pequeno café quando o número de mortos nas enxurradas no Brasil era bem menor. Volto para me lembrar de um rosto que sorria lá fora para alguém numa das duas mesas postas cá fora. 

A escala da cidade aqui é mais inóspita, não em todos os sítios mas quase em todas as ligações para eles, são os carros, os aviões ou as árvores grandes e sós que dominam. Nós sujeitamo-nos, ao som e velocidade nas grandes artérias com um corpo pequeno e desabrigado. Corpo sujeito ao ruído como ao trabalho.

16 fevereiro 2022

Diário da Bica

Andei um pouco mais para ver se o pequenino café já tinha reaberto. É uma chinesa e deve ter ido à China celebrar o ano novo. E nunca se vai por menos de um mês. Os chineses que têm negócios aqui que funcionam conseguem ir talvez todos os anos, como a família da mercearia. Este café é excelente e todas as plantas e decorações são hospitaleiros a combinar com a dona, rápida como uma pequena flecha não deixa de cumprimentar quem chega e quem sai. Estava aberto e não fora por isso continuava a desconhecer que ontem morreram quase 40 pessoas arrastadas por inundações no Rio de Janeiro.

14 fevereiro 2022

Segunda viagem da máquina expresso em forma de pássaro até à oficina. É preciso descer duas colinas e subir outras duas, se não fosse o co2 era melhor.Tirou quatro bicas, uma para o ralo, não aguentou a quinta. Pretexto para um novo dia à procura do café perfeito. 

12 fevereiro 2022

Mas a cafeteira tem segredos e os seus mitos. Talvez não chegue a vida ou o apurar dos sentidos para alançá-los. O lume baixo, a tampa aberta, a pressão com que se calca o café sobre o filtro, o metal lavado só com água. E no fim, fica a faltar o expresso, porque nos tornámos rudes e ávidos. 

11 fevereiro 2022

Diário da Bica

A máquina de casa esteve na oficina do Tiago que a desmontou, trocou uma peça, e a fez quase regressar a uma nova vida. Quando chegou a casa não aguentou a pressão do primeiro café e soltou-se um tubo lá dentro. Espera pelo regresso à oficina e as cápsulas anti-ecológicas sossegam. Voltei à cafeteira moca, fui buscar a maior e mais rústica porque algo se passa com a que tinha mais à mão com o design delicado. A antiga é perfeita, tamanho 3 chávenas ou 4, reencontrar o sabor como um amor antigo. O poder do expresso não permite aceder à subtileza do café fervido.

09 fevereiro 2022

Diário da Bica

Uma máquina Delta imponente e luminosa na sala de espera do atendimento do Hospital inquietava. Muito mais alta que qualquer de nós, ecrán tátil, com as escolhas vibrantes. Intimidou-me, a mim e à senhora que esperava atrás, partilhei com ela a sensação de ter ouvido um moinho a moer os grãos antes de ser vertido o líquido aromático para o copo miserável de plástico. Com as nossas máscaras não sei se ela percebeu, acho que não, estava nervosa como eu em saber se seria capaz de lidar com a tecnologia. Nada a assinalar a não ser ter conseguido a bica antes de mergulhar no mundo dos exames à retina que me iam atirar para uma visão desfocada do mundo por tempo indeterminado.

08 fevereiro 2022

Diário da Bica

7fev. Entrei num dos cafés em frente ao liceu. Pequenino, só uma mesa com duas cadeiras cá fora onde dois estudantes artistas fumavam o primeiro cigarro e trocavam palavras, calmas e entusiasmadas, a semana a começar. A campainha da escola tocou, entrei e bebi o café com os olhos encadeados pelo sol e com a voz de quatro cantoneiros da junta que entraram para o pequeno almoço. Não era melhor que o da máquina no trabalho, onde bebi o segundo três horas mais tarde. O terceiro foi o melhor, o sol tombava sobre a mesa e lá fora onde o pessoal do hospital descansava na hora do almoço. 
 
8fev. Ontem no regresso ao trabalho depois do café do almoço um rapaz muito jovem perguntou-me o que eu achava do homo sapiens. Fez-me uma pequena entrevista enquanto caminhávamos e disse-lhe no fim que era importante manter a esperança, quando me perguntou se achava que íamos a tempo de salvar o planeta. Pouco antes também na rua, dois rapazes igualmente jovens, pediram-me dinheiro para comer